16.3.06

Manifesto Sururu (Edson Bezerra)

Manifesto Sururu
por Edson Bezerra
O manifesto sururu quer muito pouco. Quem sabe um pouco mais do que exercitar um certo olhar: um olhar atento por sobre as coisas alagoanas. O manifesto sururu não quer apostar e nem pousar em outras imagens. O que ele procura é exercitar olhos e sentidos por sobre (e dentre) antigas e permanentes imagens das coisas alagoanas: olhar primeiramente os canais que interligam as lagoas e os rios. Os canais sempre foram as nossas pontes e disto já o sabia Octávio Brandão.
O manifesto sururu também fala da fome. Não da fome comum, mas da fome de devorar as Alagoas.
Contra as derrapagens de uma modernidade vazia, uma outra assinalada de coisas alagoanas.
Alagoas não foi feita (somente) pra turista ver.
Pra turista ver e olhar o mar.
No além-mar, pensar não outras terras. No além-mar pensar nossos interiores. Lagoas interiorizadas. Pra turista ver também. E que ele venha, e já que comemos o Bispo Sardinha, o comeremos também, mas antes disto ensinar ele a tomar banho de lagoa e comer caranguejo Uca com as mãos. Aliás, com todo estrangeiro deveria ser assim.
Novas rotas. Rotas alagoanas: de canais e lagoas, sobretudo.
O manifesto sururu não esta sozinho. O sururu, ele mesmo é o alimento e a caloria de milhares. O sururu é vida.
O manifesto sururu está atento para os batuques noturno dos terreiros periféricos e fora de rota e também dos milhares de capoeiras espalhados.
O manifesto sururu se alegra com a folia dos meninos de rua, com os guerreiros e com as tradições alimentadas pelos povos periféricos.
Manifesto sururu: mistura e associação de moluscos, peixes, águas, negros, cafusos, morenos e de todas as mestiçagens possíveis das gentes alagoanas. Manifesto sururu: do vale do Mundaú para onde houver lagoas.
Suas heranças são imagens, suas comidas e seus pais ancestrais. Assim: Calabar é nosso e, sobretudo Zumbi dos Palmares: migrantes deslocados da colônia central.
Penso em imagens alagoanas. Penso que uma delas é a Mestra Ilda do coco tomando (no mínimo) caldinho de Sururu na beira da Mundaú.
Penso em uma outra: a do Major Bonifácio melado de lama e dançando Carnaval na rota Bebedouro - Martírios. Ele, o major, bem que poderia ter também dançado capoeira.
Uma outra ainda seria pensar a Tia Marcelina como se ela fosse Nossa Senhora dos Prazeres.
No fundo somos gente-sururu e por isto trazemos nos olhos as imagens de todas as águas.
Das águas do mar e do somatório das dezenas de lagoas e rios e olhos d’água espalhados até pelas periferias da cidade.
Otávio Brandão: Mundaú: rio dos negros. São Francisco: rio dos brancos. Que vivam as lagoas todas: as vivas e as mortas. Somos filhos do barro, nascemos entre os batuques dos negros e da mistura da lama.
Por isso: que estória é esta de Terra dos Marechais?
Somos ainda a derradeira sobrevivência (e isto é fantástico) do extermínio do povo Caeté. Em nossa veia alem do povo Caeté, pulsa sangue negro. Os brancos nos trouxeram a mistura e (também) a morte.
De todo modo, mestiços de índios, negros e brancos, estamos vivos.
Cúmplices da modernidade temos o barro e a lama debaixo dos edifícios e dos asfaltos das ruas.
Somos filhos de uma cidade restinga.
Os nossos edifícios (assim como a nossa modernidade) foram construídos sob os terreiros dos negros e das moradas dos pobres. A nossa modernidade foi (está sendo) construída sobre os aterros dos manguezais e do massapé e é por isso que as vezes ainda sentimos cócegas nos pés: são eles, os caranguejos e as lamas.
Sob os aterros, se instalaram os movimentos negros, seus batuques e danças. Guardamos então muitas saudades.
Por uma nova cartografia: redesenhar roteiros visíveis, remarcar datas e reescrever novas geografias.
Manifesto sururu: Simulações sem simulacros.
Que por dentre as cenas das antenas parabólicas, outras cenas de imagens periféricas: Por uma reinvenção da cidade e celebração pública da memória dos nossos proscritos. E por falar nisso:
Viva Calabar!!!!
Além de toda ancestralidade, o erotismo do coco e dos fragmentos de nossas raízes periféricas.
Os nossos terreiros são as nossas academias: semente de ritos e lugar de celebração e festas. Viva todas as alegrias. Viva o Terreiro de Mestre Felix e de todos os mestres.
Saudades daqueles tempos. Antes do "quebra de 1912" o batuque era bem maior.
Temos muitas dívidas: para com a morte de Tia Marcelina, por exemplo.
E temos muitas outras. Uma delas é a seguinte: a Praça 13 de Maio deveria ficar na Praça dos Martírios e a estátua do negro Zumbi no pedestal no lugar do Marechal. Assim faríamos muitas festas e celebraríamos melhor o sincretismo de nossas mestiçagens. Quem sabe então ele, Zumbi, não rezaria uma missa pra depois dançar Xangô?
Nós repudiamos o etnocídio e proclamamos todos a uma grande alegria.
Viva a alegria de todas as festas. Quem antecedeu os Marechais foi Zumbi e antes dele, Calabar. Viva a subversão e a liberdade.
Entre os nossos pobres (pobres específicos) aqueles que sobreviveram a maleita e a fome estiveram desde sempre os cantadores de coco, de toadas, de forro, das rodas de samba, os repentistas, os criadores do martelo alagoano, os capoeiras, os macumbeiros e mandingueiros. Em suma: as almas inspiradoras.
Das lagoas. Também elas invadiram (e invadem) o mundo das imagens: de Guilherme Roggato a Celso Brandão.
As palavras-mundo de Jorge de Lima e Ledo Ivo são roteiros cinematográficos de um imaginário alagoano.
Do somatório de todas as águas: as águas do mar que invadiram a todos.
Dos olhos d’água e do cheiro de maresia contra o cheiro agridoce das canas. Maresia alagoana: ela contaminou a todos: dos pisantes das terras alagoanas - dos índios e negros, brancos e holandeses e até mesmo aos piratas franceses.
...e sobretudo do cheiro do sururu tirado fresquinho da lama: alimento dos negros e pobres. Imagem segura e maternidade de nossas imagens mães. Assim, Mestra Ilda também é Zumbi e Mestre Zumba também.
Além de sentimentais, somos anfíbios, quer se queira quer não.
Quem ainda não provou do sururu, tomou banho de lagoa é aleijado dos olhos e cego no corpo.
Viva Deodato, outro negro artista.
Sururu: ao redor dele, os bairros e os povoados se amontoaram e se enredaram: Ponta Grossa, Levada, Pontal, Bebedouro e Rio Novo. Todos filhos das águas.
O sururu então, mais dos que os homens, inventou e recriou as nossas geografias: as cartografias de nossa primitividade. Ali naqueles espaços embrenhados dançava-se Macumba, fumava-se liamba, cantava-se o coco e se recriava um mundo: o mundo alagoano. Como isto foi possível?
Na busca do sururu, os homens pobres desenharam ruas.
Sururu: espaços coletivos, maternidade e memória. Nascedouro e rotas de outros espaços geográficos. Espaços de uma memória possível.
Viva Jorge de Lima e Celso Brandão que filmou o "Pesca Sururu".
Levada. Alguém lembra que ali havia um porto?
Turismo primitivo: a Bica da Pedra, o banho no Cardoso, o Catolé. Lugares de luz com águas frescas e claras.
O bar das Ostras.
O porto de Bebedouro e de Santa Luzia do Norte, alguém lembra?
"Sururulândia": Esta é nossa riqueza e desde sempre memória.
Mas aconteceu que Maceió fugiu da mundaú. Pensou que a lama e os caranguejos e os homens-caranguejos iam engolir ela!!!!
A nossa Aristocracia então (com medo e nojo) fugiu do barro - e fugiriam também da zoadas dos batuques, do coco e das macumbas e foram morar lá na banda das praias: Pajuçara, Ponta Verde e Jatiúca. E naquelas praias há pouco desertas, no lugar dos casebres e casas de paus a pique, foram montados os edifícios e as luminárias elegantes da cidade. E as águas do mar são diferentes das águas da lagoa.
A gente sururu então ficou sozinha.
Formou-se deste então duas gentes: a gente sururu e o povo rico da cana.
De um certo modo, ao gosto do sururu, se somou o cheiro da cana. Alagoas então é de todo um pouco de cada pedaço.
Mas, ao contrario da maternidade dos mariscos, os capins da cana se tornaram baionetas retocadas de sangue.
Na verdade a cana nunca foi doce. Zumbi e os negros já desde sempre sabiam.
O sururu também não é doce. Mas entre o doce e o salgado, e somado à mestiçagens das cantigas e do somatório das estórias todas, ele foi dando alma e corpo à gentes alagoanas.
Por isto, é uma pena que o Farol não derrame sua luz na mundaú.
O Farol nunca iluminou as lagoas. Nas lagoas não navegam os navios (afinal o que trazem os navios?), nas lagoas navegam apenas os peixes, os homens e os mariscos adormecidos e preguiçosos: o bagre, o mandim, o siri, o caranguejo e o sururu enfiado na lama
Mas afinal, se toda festa tem um tempo, qual o tempo sururu?
Sururu, cultura oral sururu. Sinestesias: pureza aberta e sem perigo.
Sinestesias: um dia uma branco tomou caldo de sururu e ficou doido.
Sururu: comida dos pobres:
Nossa miséria é a nossa riqueza.
Que ressuscitemos todas as histórias
E que no banquete das mestiçagens periféricas
Morram colonizadores e colonizados.
E que por dentre o barro e cheiro da lama
E no somatório de todas as imagens
A Mundaú central,
E nela a gente sururu seja imensa
Feito um oceano sem margens.
No somatório de todas as águas.
* Texto transcrito do blog da banda alagoana "Vestindo a Carapuça", editado pelo poeta e música amigo Sóstenes Lima.
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