18.3.06

Entrevista de Otávio Brandão sobre as Alagoas de 1917

Do site: (http://www.cpdoc.fgv.br)

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)
Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A
citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo.
REGO, Otávio Brandão. Otávio Brandão (depoimento, 1977). Rio
de Janeiro, CPDOC, 1993. 139 p. dat.
OTÁVIO BRANDÃO
(depoimento, 1977)
Rio de Janeiro
1993
Ficha Técnica
tipo de entrevista: história de vida
entrevistador(es): Maria Cecília Velasco e Cruz; Renato Lessa
levantamento de dados: Maria Cecília Velasco e Cruz; Renato Lessa
pesquisa e elaboração do roteiro: Maria Cecília Velasco e Cruz; Renato Lessa
sumário: Nara Azevedo de Brito
conferência da transcrição: Nara Azevedo de Brito
copidesque: Elisabete Xavier de Araújo
técnico de gravação: Clodomir Oliveira Gomes
local: Rio de Janeiro - RJ - Brasil
data: 15/01/1977 a 10/02/1977
duração: 6h 50min
fitas cassete: 05
páginas: 139
Entrevista realizada no contexto da pesquisa "Trajetória e Desempenho das Elites Políticas
Brasileiras", parte integrante do projeto institucional do Programa de História Oral do CPDOC,
em vigência desde sua criação, em 1975.
Esta entrevista subsidiou a elaboração da tese de doutorado de Dulce Pandolfi, publicada no
livro Camaradas e companheiros: memória e história do PCB (Rio de Janeiro, Relume-Dumará;
Fundação Roberto Marinho, 1995).
temas: Anarquismo, Astrogildo Pereira, Bloco Operário e Camponês (1928-1930),
Cooperativismo, Greves, Movimento Operário, Otávio Brandão, Partido Comunista do Brasil,
República Velha (1889-1930), Sindicalismo, Sindicatos de Trabalhadores.


"Sumário
1ª Entrevista: 15.01.1977
Origem familiar; formação escolar e intelectual; jornal A Semana Social; protesto contra a
Primeira Guerra Mundial e a prisão; os anarquistas; sindicalismo em Maceió; criação da
Socidadade dos Irreverentes e da Congregação Libertadora da Terra e do Homem; setores
ativos do operariado; sindicatos amarelos; anarquismo e anarco-sindicalismo; políticos e
movimento operário; anarquismo e revolução; Insurreição de Magé (1918); inviabilidade do
anarquismo; sindicatos anarquistas; a Coligação Social; Federação Operária; ação política
anarquista; caráter individualista do anarquismo; socialistas e positivistas; a imprensa e a
questão social; relações com Prestes; o Bloco Operário e Camponês; dificuldades do BOC em
São Paulo; Teotônio Sousa Lima; atividade política nas fábricas; aliança com o
tenentismo.............................. p. 1-37
2ª Entrevista: 21.01.1977
Contatos com anarquistas; reunião em Buenos Aires e liquidação do BOC (1930); expulsão do
Brasil (1931); influência do BOC entre os trabalhadores; I Conferência Comunista do Brasil;
difusão do anarquismo no Brasil; José Elias da Silva; desagregação do PC; popularidade dos
políticos entre os operários; os amarelos no porto; movimento cooperativista; jornal A Voz do
Povo; greve da Leopoldina (1920); deportações de anarquistas por Epitácio Pessoa; Lima
Barreto; organização das greves; greve dos gráficos (1929); adesão de Astrojildo ao
comunismo; o Partido Comunista e a disciplina partidária; a insurreição de 1935; Coligação
Social (1920); Everardo Dias; o grupo Clarté; o Partido Socialista; ligações dos sindicatos com
o coronel Bandeira de Melo; luta contra os anarquistas; Astrojildo Pereira; reorganização dos
sindicatos; insurreições da Internacional para o movimento no Brasil; atuação de Astrojildo
Pereira; criação do PC e propostas de trabalho; I Congresso do PC; perfil dos fundadores do
PC; o trotskismo; papel da esposa no movimento operário.......................................................
p.37-97
3ª Entrevista: 10.02.1977
Influência da Internacional na fundação do PC; reorganização dos sindicatos; órgãos do PC;
trabalho junto aos camponeses; vereador em 1946; organização interna do PC; interferência da
Internacional na linha do partido; atividades nos sindicatos; diferenças entre anarquismo e
comunismo; o PC e as leis trabalhistas; proposta de frente cínica entre o PC e os anarquistas;
tentativa de ligações com a Coluna Prestes; adesão ao comunismo; II Congresso do Partido;
política reformista burguesa nos anos 20; sistema eleitoral na República Velha; criação e
atuação do BOC; atuação como vereador; Revolução de 1930; reunião em Buenos Aires;
legislação eleitoral........................................................................................................... p. 97-139
1ª Entrevista: 15.01.1977
M.C. - Otávio, onde e quando você nasceu?
O.B. - Eu nasci a 12 de setembro de 1896, na cidade de Viçosa, de Alagoas, no interior,
a cem quilometros do litoral, no meio das plantações de cana-de-açúcar. Subiam,
desciam ladeira, até as portas da cidade, aquelas plantações de cana-de-açúcar. Viçosa é
uma cidade muito pequeno-burguesa, cercada de latifúndios, antigos engenhos,
engenhos de açúcar. Só muito depois é que apareceu uma usina. Então, o ambiente era
este: uma pequena burguesia urbana - uns progressistas, outros confusos, outros
reacionários - e aquele latifúndio cercando a cidade, latifúndios de plantações de canade-
açúcar. Lugar muito bonito, o rio Paraíba no meio dos pedregais, aquelas matas, às
vezes matas virgens. Uma coisa raríssima na história do Brasil a gente encontrar matas
virgens. Uma dessas, subindo a serra Dois Irmãos, atravessei com um grupo de amigos:
seis horas subindo e abrindo caminho com um facão, porque de outra forma não era
possível dar um passo - aquele entrelaçamento de cipós, da base até lá em cima, eram
matas virgens. Agora estive em Itatiaia e vi lá matas bonitas, mas os paus são finos, quer
dizer são recentes, e a mata não é virgem. A gente pode penetrar de um extremo a outro,
como na Europa.
M.C. - E qual era a profissão de seu pai?
O.B. - Meu pai era prático de farmácia. Era um homem democrata, progressista, um
homem de idéias muito avançadas para a época. Não esqueça de que, chegou 15 de
novembro de 1889, houve a Proclamação da República no Rio de Janeiro, e chegou lá a
notícia muito depois. Não havia telégrafo; não havia estrada de ferro. Então, os
pequeno-burgueses urbanos reuniram-se na Câmara Municipal e proclamaram sua
adesão à República. Bom; até aí, nada demais. Na hora dos triunfadores, sempre
aparecem os oportunistas. O diabo é que Viçosa ficava longe, no interior, e um dia
chegou a notícia: "Dom Pedro II recompôs a Monarquia". E todos começaram a dizer:
"Estamos perdidos, vamos ser enforcados, porque fizemos um documento público."
[risos] E, assim, um escândalo tremendo. Então, foram a meu pai para ele retirar a
assinatura. Estava lá: Manuel Correia de Melo Rego. Mas meu pai respondeu: "Não; eu
coloquei a assinatura; agora, acabou-se. Prefiro ser enforcado a retirar a assinatura."
Então ele deu coragem aos outros pequeno-burgueses e ficou o dito pelo não dito.
Depois é que chegou a notícia de que a República estava se consolidando, que a
Monarquia estava perdida. Ele disse: "Está vendo? Imagine que vergonha, nós, depois
de termos assinado esse documento, retirarmos a nossa assinatura! Teria sido uma
desmoralização total." Eu tenho aí uma cópia desse documento.
Era um homem assim, de caráter! Eu, do ponto de vista do pensamento, devo muito a
meu pai, e do ponto de vista do sentimento, devo à minha mãe.
Minha mãe era dessas mulheres amorosas, cheia de carinho, cheia de doçura. Uma
coisa admirável. Muitos anos depois saí pelo mundo... Mas ela morreu logo, quando eu
tinha quatro anos de idade.
M.C. - Você tinha irmãos?
O.B. - Tinha uma irmã - os outros morreram - que ainda está viva. Depois da morte de
minha mãe, eu cresci, saí pelo mundo procurando suas amigas. Chegava num lugar,
perguntava: "A senhora conheceu d. Maroquinha, da Farmácia Popular, rua do
Juazeiro?" Ela dizia: "Ah, eu conheci:" E eu perguntava: "Como era dona Maroquinha?"
Ela respondia: "Era uma maravilha de mulher." Para as amigas ficou aquela recordação.
Então, do ponto de vista do sentimento, devo muito a minha mãe. Está ali o retrato dela,
ao lado do meu pai.
M.C. - Otávio, o que você estudou? Onde?
O.B. - Bem; eu estudei em Viçosa. Aprendi a ler com a professora Maria do Â. Era uma
negra. [risos] Dava bolo a três por dois. Eu tinha muito medo dela! Ela, porém, nunca
me bateu. Aprendi rapidamente a ler. E é interessante que Graciliano Ramos, que hoje é
uma glória nacional, também aprendeu a ler com Maria do Â. Ele num dos livros, ataca
a Maria do Â; e eu, num artigo, no Diário de Notícias, no Suplemento Literário, a
defendi. Ela ensinou a ler a dois escritores: [risos] um é uma celebridade; o outro é
negado por todos os lados. É uma questão de classe! Mas, de qualquer forma, ela nos
ensinou a ler, além de outros e outros. É uma mulher pobre, negra, professora primária,
perdida no interior de Alagoas, vivendo só, naquela pobreza, e acabou na miséria Maria
do Â.
M.C. - E o ginásio?
O.B. - Bem; depois fui para outros colégios. Sobretudo o colégio do Professor Tibúrcio
Nemésio. Este homem tinha idéias progressistas. Era da pequena burguesia urbana,
progressista, lá de Viçosa. Ele também contribuiu para o meu desenvolvimento. Depois,
fui para Maceió, e aí quiseram converter num santo o caboclo rebelde de Viçosa. Era um
colégio de Irmãos Maristas, mas eu não queria aprender o catecismo. Meu pai não me
ensinou o catecismo, meu pai nunca me mandou à igreja. Ele só acreditava em Deus e
na madrinha dele - esta coisa de adotar uma santa, que era madrinha da Igreja de Santa
Rita, lá na região dos Canais e das Alagoas. Ele falava: "Só acredito em Deus e na
minha madrinha Santa Rita." Nunca me mandou à igreja. E os Irmãos Maristas queriam
me ensinar o catecismo. Eu não queria, então, fui castigado. Parece que era às quatro
horas da tarde a hora de ir brincar em Maceió. Quatro horas da tarde, eu era castigado. Ia
para um salão, ficava olhando a parede [risos] durante duas horas. Parece que foram
trinta e tantas horas de castigo para eu me tornar católico! Eu, de fato, não era católico e
não conhecia o catecismo. No fim, eu, desesperado, sem ter para quem apelar, penso:
"Se eu recusar, volto a Viçosa, e lá não tem nada, não tenho futuro. Que fazer?" No final
aceitei e me tornei católico.
M.C. - E quando é que você rompeu com o catolicismo?
O.B. - Fui católico dois anos e meio. Em 1912, rompi totalmente e nunca mais voltei ao
catolicismo. Fui o primeiro a romper na família. Então foi um escândalo, uma coisa
tremenda. Meu tio, Alfredo, que pagava meus estudos, ficou desesperado e dizia:
"Quando eu morrer, vou pagar este crime de ter contribuído para educá-los, e você saiu
assim contra a Igreja!" Havia um tio padre, irmão da minha mãe. Foi também uma luta
tremenda contra ele. Havia o bispo de Alagoas, que também era Brandão. Tudo era
Brandão e tudo católico. E essa gente toda caiu em cima de mim. Uma coisa
terrível! Foi uma luta desesperada, que durou de 1912 a 1919. Em 1919 tudo se
complicou, porque havia nossa luta no seio da família, mas também havia a luta social,
em Maceió, ajudando os operários a conquistar o dia de oito horas, conquistar aumento
de salários, liberdades sindicais. Aí fui metido na cadeia de Maceió, e a única solução
era fugir de Alagoas. A família se opunha, mas havia já um bandido para me matar.
Então, foi em 1912 a ruptura. Claro que eu não podia ter a base teórica que tenho hoje:
falta de livros, falta de amigos. Fiquei sozinho naquela luta, anos e anos. E a família
toda dizendo:" Volta, volta ao catolicismo."
M.C. - Você participou de algum grupo anticlerical?
O.B. - Não.
M.C. - Existia algum em Maceió?
O.B. - Não; não havia ninguém. Eu falava com uns, com outros, ninguém queria. Eu
sozinho, absolutamente só, anos e anos. Tal o atraso! Não havia livros, não havia
ambiente, não havia nada. Fui estudando literatura em geral, como, por exemplo,
hindus, que consegui, os gregos sobretudo, os alemães, os russos etc. E, estudando
filosofia, li o livro de Büchner, Força e matéria, li Darwin, li Haeckel, biólogos. O que
encontrei, eu fui lendo e devorando com aquela ansiedade. Para poder resistir àquela
pressão toda do ambiente. Li Nietzsche. E isto me salvou. Eu digo:" Não; não volto
nunca mais, nunca mais."
M.C. - Isso foi na época em que você estava na faculdade?
O.B. - Sim; eu estava no Recife, em 1912, estudando farmácia. Estudei três anos e
completei o curso no Recife. Mas, paralelamente, estudei os naturalistas, ciências
naturais, teoria e prática. Saía pelos arredores de Recife estudando botânica,
mineralogia, geologia. E estudando literatura universal. Aí conheci os hindus; conheci o
Rig-Veda, que é o mais bonito dos quatro Vedas. Li o Rig-Veda; li Sa Kuntale,1 de
Kalidaga; li o que encontrei. Até hoje eu guardo esse exemplar do Sa Kuntale. Eu
admirei muito os hindus. E fui procurando os materialistas, aqui, ali e acolá.
M.C. - E como você entrou em contato com as idéias anarquistas?
O.B. - Isso já foi depois, em Maceió. Em Maceió, houve um tipógrafo, Antônio
Bernardo Canelas. Ele era tipógrafo, jornalista, tudo. Ele editou o jornal A Semana
Social, em Maceió. Ele não estudava. Acreditava demais na própria intuição, mas era
muito inteligente. Tinha antenas; pegava as coisas no ar. Canelas editou esse jornal.
Esse jornal teve muita importância, porque, quando o governo declarou guerra à
Alemanha, A Semana Social botou lá a manchete: "Abaixo a guerra imperialista."
Somente Maceió, Rio e São Paulo é que protestaram contra a guerra. A esmagadora
maioria dos intelectuais: Rui Barbosa, Coelho Neto, toda essa gente apoiando os
Aliados contra os alemães. E nós contra os Aliados e contra os alemães, de modo que
foi um coisa impressionante. E Canelas tinha amizade com Astrojildo Pereira, aqui no
Rio de Janeiro. Astrojildo morava em Niterói, a correspondência vinha para o Rio de
1 Sa Kuntale (o anel perdido) é uma peça do poeta indiano Kalidaga (Sec. V).
Janeiro. Então, Astrojildo começou a dar indicações. Aí eu li Bakunin, Deus e o Estado;
li Kropotkin, A conquista do pão; li Sebastião Faurre; li Malatesta. O que encontrei, fui
lendo. E li Nietzsche, que contribuiu muito, porque, como ele mesmo diz, no prefácio lá
de um dos seus livros: "Retirai deste livro amargo, razões para tudo." [riso] É como a
Bíblia, a gente tira dali o que bem quer. E então, Nietzsche serviu para eu resistir àquele
ambiente clerical, àquela pressão da família, àquilo tudo. Ele representou um papel
positivo. E as outras idéias dele, em filosofia e em sociologia, eu repudiei. Admirei
sobretudo as poesias, como aquele "Canto da Noite", que ele escreveu em Roma.
Quanto às idéias, muitas das idéias dele, que depois contribuíram para o nazismo, eu
rechacei já em 1916, 1917, quando ele diz: "O Estado é o mais frio dos monstros..."
Porque Nietzsche tem muitas coisas anarquistas e tem coisas que serviram para Hitler. A
primeira parte foi a que eu adotei. O livro dele O anticristo, que é uma crítica ao
cristianismo, também li. E foi o que eu encontrei em Maceió. Sobre a Rússia, o único
livro que encontrei foi um livro do século passado... Stepniaquim descrevendo os
Narodnaiavolia, os terroristas do século passado. Foi o único livro que encontrei, não
encontrei mais nada de lá. Ou então artigos de jornal, mas artigos caluniosos. Todos
esses jornais caluniando a revolução na Rússia.
M.C. - A Semana Social foi fundada quando?
O.B. - Mais ou menos em 1916 ou 1917, por aí assim.
M.C. - E você começou a escrever para o jornal em que época?
O.B. - Escrevi artigos contra, por exemplo, aquelas coisas do Olavo Bilac, o
militarismo, a defesa nacional, aquilo tudo. Escrevi um artigo de que ainda me lembro.
Fui à redação, sentei-me num canto qualquer e fui ditando, Canelas escreveu e publicou.
E um outro... Eu li A mãe, de Máximo Gorki, que exerceu uma influência muito grande
em mim, porque eu vi a mãe proletária, a mãe operária, que, levada pelo carinho e pelo
amor do filho, foi-se transformando até se tornar uma revolucionária. A mãe, de
Máximo Gorki, exerceu grande influência na minha vida. E escrevi [risos] influenciado
pelo livro de Gorki, um apelo à revolta. Foi um escândalo! Saiu em A Semana. Foi um
escândalo, uma coisa terrível, chamando o povo todo à revolta contra os comendadores,
os latifundiários, a burguesia.
M.C. - O jornal tinha uma tiragem grande?
O.B. - Não; grande não podia ser, porque era boicotado. Somente grupos de operários,
em Maceió, e pequeno-burgueses urbanos progressistas é que liam A Semana Social.
M.C. - Ele era boicotado de que forma?
O.B. - Bem; dinheiro não tinha. Canelas deixava de comer para juntar dinheiro para
poder comprar papel, e havia sempre dificuldades.
M.C. - Ele era o único editor do jornal?
O.B. - É; ele era o tipógrafo, o jornalista, o doutor, o escritor, tudo, tudo. Ele não tinha
cama. Havia, assim, um lugar debaixo... Não tinha linotipo, era tipógrafo.
Debaixo daquelas caixas dos tipos, um cantinho, era ali que ele dormia.
M.C. - E os operários em geral liam esse jornal?
O.B. - Liam; os operários de Maceió liam esse jornal. Grupos de operários. Acabou tudo
na cadeia de Maceió. Uns 14!
M.C. - Por quê?
O.B. - Imagine! A Igreja Católica zangada, porque eu fiz conferências, mostrando a
origem da terra alagoana através de milhões de anos, e perguntavam: "E Deus?" Eu
respondia:" Deus não tem nada a fazer nesse terreno. É a geologia. Deus não entra nesse
terreno." Então a Igreja muito zangada, pois queria que eu fosse um esteio da Igreja
Católica como os outros Brandões. Por exemplo, se a gente chegava num lugar e
perguntava: "Quem construiu aquela igreja?" A resposta era sempre: "Foi um tal
Brandão." Mais adiante, a gente perguntava: "E essa outra?" "Foi um tal Brandão." E
quando não construiu, pelo menos reconstruiu. O irmão da minha avó, o vigário
Francisco de Borja Barros Loureiro, reconstruiu a igreja de Viçosa, que até hoje está lá.
M.C. - Quer dizer que a sua família é uma família tradicional em Alagoas?
O.B. - E clerical, com aquele fanatismo danado, muito duro, muito duro. E essa coisa de
virgindade de Maria! Eu dizia: "Não me aborreçam com bobagens." E eles reagiam:
"Como bobagem? Isso é uma coisa sagrada, e não sei o quê." Eu dizia: "Ela foi mãe e
ficou grávida, não podia ser mais virgem." Eles respondiam: "Mas que escândalo!" E os
tios ficavam ofendidos, não queriam discutir. Eles diziam: "Mas que desaforo, que
ofensa." Eu explicava: "Não estou ofendendo o senhor, não estou dizendo nada." "Um
menino que vi nascer outro dia quer me dar lição." "Eu não quero dar nenhuma lição,
mas estudei religião, e o senhor não estudou." "Que desaforo, que ofensa." Não havia
meio de discutir. Nesse ambiente era muita coação, sempre. Os parentes todos, um
bando de beatos. Precisava ter paciência, se não eu os mandaria: "Vão para o inferno,
que se danem!" Mas eu não dizia.
M.C. - Mas como é que os operários foram presos? O senhor estava contando...
O.B. - Bem; isso já foi depois. Em 1917, esse protesto contra a guerra repercutiu muito.
Maceió teve essa glória - Maceió, Rio de Janeiro e São Paulo. Ninguém mais protestou.
Um avacalhamento geral. A massa dos intelectuais era toda de aliadófilos, como Rui
Barbosa. Todos diziam "Esta é a última guerra! Esta é a guerra da justiça! É a guerra do
direito contra a força! Eu sou pela força do direito, contra o direito da força!" E diziam
"Muito bem! Viva Rui Barbosa!" Essa palhaçada toda. E nós, contrários.
Isso abalou aquilo tudo. O jornal foi fechado. Canelas teve que ir embora para o
Recife, não pode mais ficar. E, pela primeira vez, penetrei na vida ilegal. Passei 15 dias
no interior. Veio a multidão - imagine -, a multidão envenenada: empregados do
comércio, estudantes, cerca de cinco mil pessoas. Fizeram um comício na praça dos
Marítimos e, depois, saíram para a redação de A Semana Social. Lá, bateram à porta,
que estava fechada, pois o Canelas estava dormindo. Uma vizinha veio e acordou o
Canelas. Ele acordou com aquele barulho: "Lincha Canelas! Mata Canelas! Espião
boche!" (Chamavam os alemães de boches.) Então, a vizinha passou pelos fundos...
Sabe como são essas casas no interior: não têm quintal, e passa-se de uma casa para a
outra. Essa senhora levou Canelas para a sala de jantar e botou a rede por cima dele. Ele
ficou ali encolhido, ouvindo esse barulho de cinco mil pessoas gritando: "Espião boche!
Acaba com isso! Mata! Lincha o bandido!" E, naquele meio, um sujeito, não sei quem,
gritou: "Quem escreveu o artigo contra a guerra não foi Canelas, foi Otávio Brandão!
Vamos quebrar as costelas dele!" [riso] Minhas costelas não são de ferro! Eu já previa
isso e estava no interior, lá em Viçosa. Então, no final, os amigos que estavam na
multidão, disseram: "Não; não foi Otávio Brandão que escreveu o artigo contra a
guerra."
Passou; mas o jornal morreu. Minha família aí embrulhou tudo, e todos
começaram a dizer: "Antes era por causa do catolicismo; agora já se mete no meio
desses desordeiros e é acusado de espião boche." Eu digo: "Eu não; não tenho nada de
espião boche. Essa guerra é um crime, nós somos contra os alemães e contra os
Aliados."
Depois, no final, houve a insurreição de 1918, dos operários aqui, e Oiticica foi
deportado para Maceió. Eu fui visitá-lo no engenho Mundaú, da família dele. Então,
conversamos um pouco. Sei que aproveitaram umas conferências de um espírita e
lançaram um manifesto. A Polícia saiu atrás do autor do manifesto, e o encontrou.
Meteram-no na cadeia. Fui visitá-lo e, por crime de solidariedade, fui preso. Creio que
13 ou 14 pessoas, inclusive operários, foram presas, acabaram na cadeia de Maceió.
M.C. - O manifesto era sobre o quê?
O.B. - Não me lembro mais. O manifesto foi provocado por esse Viana de Carvalho,
que era espírita e andava fazendo propaganda do espiritismo. Então, parece que Oiticica
escreveu este manifesto. Não tinha grande importância, mas a questão era que antes nós
tínhamos levantado esses problemas todos, e a Polícia aproveitou para acabar com o
movimento. Invadiu os sindicatos, deu pancada a torto e a direito...
M.C. - Que sindicatos?
O.B. - Ah! Nós criamos um sindicato de operários. Era o Sindicato de Ofícios Vários.
Quer dizer, da Igreja Católica, zangada por causa da nossa explicação materialista da
origem da terra alagoana, perguntavam: "E Deus?" Eu dizia: "Deus não entra, não tem
nada a fazer na geologia." A burguesia zangada, por que os operários trabalhavam 12,
14, 16 horas na fábrica de tecidos de Fernão Velho, em Rio Largo, por um salário
miserável, e nós lutávamos pelo dia de oito horas. E fomos conquistando aqui, ali e
acolá, o dia de oito horas, aumento de salários e liberdades sindicais. Bom: a burguesia
zangada; a Igreja Católica zangada; os agentes do imperialismo, que vendiam gasolina e
essa coisas todas, zangados, porque provei que Alagoas tinha petróleo, e eles diziam
sempre: "O Brasil não tem petróleo! O Brasil não tem petróleo!" E eu provei que
Alagoas tinha petróleo. Isto em 12 de outubro de 1917. Os latifundiários zangados,
porque nós penetramos no interior pregando divisão das terras. "A terra aos
trabalhadores de enxada." Então se juntaram todos: a Igreja Católica, os agentes do
imperialismo, a burguesia, os latifundiários. E o ódio. Então, publicavam:
"Maximalismo em Maceió." Aquelas manchetes e aquilo tudo.
M.C. - Quer dizer que você também atuou politicamente na cidade?
O.B. - Isso em 1917; e fui ao interior, aos engenhos dos meus parentes, procurar lá os
trabalhadores de enxada e dizer: "A terra pertence a vocês! Divisão das terras! A terra ao
trabalhador de enxada!" A família se reuniu e disse: "Ainda mais essa! O homem é um
inimigo de Deus, um inimigo de Cristo, e agora é inimigo dos próprios parentes, quer a
desgraça dos parentes!" Houve um conselho da família proibindo que eu visitasse, lá, os
latifúndios.
R.L. - Otávio, só havia anarquista em Maceió?
O.B. - Houve o Canelas, que era anarquista; houve o... Rosalvo Guedes; que foi meu
amigo, uma criatura excelente, ele foi preso. Houve um que tinha um nome estrangeiro
mas era brasileiro.
M.C. - Mas todos morando em Maceió?
O.B. - Todos vivendo em Maceió.
M.C. - E fora de Maceió?
O.B. - Fora de Maceió, houve o meu amigo Alcides Pimenteira, um alfaiate. Um dia a
Polícia foi lá prendê-lo e o encontrou: "Onde é que está Alcides Pimenteira?"
Mostraram o morro do cemitério e disseram: "Está ali; vão buscá-lo." Estava morto.
M.C. - E ele morava onde?
O.B. - Morava em Viçosa, na rua Elói Brandão.
M.C. - Em Viçosa, tinha alguma fábrica?
O.B. - Não; não tinha fábrica, mas havia o descaroçador de algodão, havia os padeiros,
havia assim um movimento. Em 1946, criaram uma célula e deram o meu nome a essa
célula. Célula do Partido Comunista. Mas isso em 46.
M.C. - E, em Maceió, era grande a classe operária?
O.B. - Não era grande; havia muito artesão, operário de construção civil, alfaiate
artesão, alfaiate a domicílio. Juntando esta gente toda, dava alguma coisa. Fizemos um
comício com quinhentas pessoas na sede do Sindicato de Ofícios Vários. Aquela massa
ali, e nós falando.
M.C. - Existia outro sindicato?
O.B. - Existia um outro na rua 16 de Setembro: Sindicato de Ofícios Vários. O que
houve foi que nós fomos procurar e mexer essa gente toda; mas nós não tínhamos,
assim, uma base teórica. Depois eu lhe dou o meu livro, Caminho, que descreve esse
movimento em Maceió, de 1916, 1917, 1918, até março de 1919. Acabou tudo logo, na
cadeia de Maceió.
M.C. - Quer dizer que nem todos esses artesãos eram sindicalizados?
O.B. - Não; não eram sindicalizados. Nós ainda fazíamos um trabalho de propaganda,
de congregar essa gente toda. Sindicato de Ofícios Vários, isto é, de qualquer um.
Qualquer um, de qualquer que fosse o ofício aderia ao sindicato. A gente jogava a rede,
dizia: "Nós somos pescadores. Nós lançamos a rede de arrasto e puxamos. O que vem
está certo." Não podíamos, por exemplo, fazer um Sindicato dos tecelões. Havia fábrica
de tecidos em Jaraguá, mas aquilo era como fortalezas, muito difícil de penetrar; havia
a fábrica de tecidos de Fernão Velho, em Rio Largo, mas era também muito difícil
penetrar.
M.C. - Porque era difícil, Otávio?
O.B. - Porque eu morava em Maceió, e era preciso ir morar naqueles lugares. E a
vigilância era tão grande! Havia os capangas, bandidos pagos pelas fábricas para vigiar,
espiões e tudo isso. O atraso era tão grande que a pessoa se arriscava muito. Eu me
arrisquei indo lá nos engenhos e fazendas, fazendo propaganda no meio dos
trabalhadores. Havia capangas por todos os lados.
M.C. - E, em Maceió, como é que vocês faziam a propaganda?
O.B. - Bem; nós, lá nos sindicatos, fazíamos conferências, fazíamos comícios. A Polícia
foi deixando, até certa hora.
M.C. - Vocês tinham algum jornal além de A Semana Social?
O.B. - Não; só A Semana Social e, depois, manifestos. Imagine: havia uma roubalheira
para aumentar o preço do açúcar. Nós conseguimos descobrir isso e denunciamos os
nomes daqueles capitalistas. Reuniu-se a Associação Comercial de Alagoas para rebater
a acusação. Nós lançamos um manifesto e grudamos nos postes em 1918. Foi um
escândalo, uma coisa pavorosa. E o título era este: "Povo, à revolta!" E terminava
dizendo que o Brasil só endireitaria no dia em que - hoje não faria assim - o último
burguês fosse enforcado com as tripas do último político. [riso] Cada coisa dessas era
um escândalo. Uma cidade pacata, pequeno-burguesa, cheia de funcionários públicos,
aquela vida vegetativa, aquilo tudo, e aparece um grupo assim!
Primeiro, fundamos a Sociedade dos Irreverentes, o nome já... Mas entrou lá um
espírita e veio pregar espiritismo. Então, dissolvemos a sociedade. Dizíamos: "Não; já
tem espírita de mais aí. Não precisa mais."
M.C. - Isso foi quando, a Sociedade dos Irreverentes?
O.B. - Mais ou menos em 1917. Então, dissolvemos a Sociedade dos Irreverentes. Mas,
em 1918, fundamos uma coisa mais séria, que se chamou Congregação Libertadora da
Terra e do Homem, pregando a divisão de terra, aumento de salários, a valorização da
cultura brasileira, uma série de problemas. A questão agrária, li, discuti. E fomos
penetrando nas fazendas e engenhos, pregando "terra aos trabalhadores de enxada", a
divisão das terras. Um escândalo pavoroso.
M.C. - Você fundou a Congregação com quem?
O.B. - Fui um dos fundadores.
M.C. - E quem mais?
O.B. - Na maioria, eram pequeno-burgueses; os operários aderiram depois. Pequenoburgueses;
jornalistas; o poeta Faustino de Oliveira, uma criatura excelente, ainda está
vivo; o Rosalvo Guedes, que era um pequeno empregado; Umbelino Silva, também um
pequeno empregado.
M.C. - Canelas não participou disso?
O.B. - Não; já tinha sido expulso. A Polícia obrigou-o: "Ou você vai embora, ou será
preso e expulso." Então, ele foi para Pernambuco, e lá editou um jornal dos operários.
Depois, foi para Paris. Esteve aqui e acolá. Esteve em Moscou, num congresso. E, de
volta, ele disse: "Na hora de votar o projeto de Lenin, eu votei contra. Fui o único voto
contra." Eu lhe disse: "Foi uma asneira que tu fizeste; tinha que votar a favor." [riso] Ele
achava que ele era uma glória, mas eu disse: "Foi uma asneira; tinha que votar a favor."
[risos] Ele guardou o anarquismo até a morte. O Canelas tinha qualidades. Era corajoso,
valente, não se avacalhou. Mesmo no meio desses perigos, de tudo isso, era corajoso.
Mas acreditava na intuição e não estudava nada. Mesmo em Paris, não estudou nada.
Então, morreu anarquista. No final, acabou brigando, descompondo. Foi para o jornal A
Pátria, na seção operária, descompondo. Mas isso já foi uma história de 1923, 24.
M.C. - Voltando, então, para a época sobre a qual a gente estava conversando. Na
Congregação Libertadora da Terra e do Homem, vocês tinham o apoio de algum setor
da classe operária?
O.B. - Tínhamos operários.
M.C. - Que participavam?
O.B. - Sim; era, em geral, um movimento... Os russos chamam de stirrina2 um
movimento espontâneo dos operários. Um atraso muito grande. A macumba de lá se
chama xangô. Eram trabalhadores que não iam às reuniões para ir ao xangô. A cabeça
deles, cheia de xangô e iemanjá. Era uma luta muito grande. Para você ter uma idéia do
ambiente, eram fetichistas, quer dizer, xangô e toda esta coisa, espíritas, protestantes e
aquela massa de católicos, oficialmente católicos, mas na realidade eram católicos
fetichistas.
Eu trabalhava numa farmácia, e vinham aqueles doentes. Apareceu lá um doente
com uma úlcera muito grande na perna. Eu lhe disse: "Vamos tratar desta úlcera, tomar
injeções e lavar isso. Eu lavo." Lavei muita úlcera, muita ferida. Ele disse: "Quanto o
senhor cobra?" Eu respondi: "Nada." Ele perguntou: "Mas por que? Em nome de que o
senhor quer fazer isso?" Eu lhe disse: "É amor ao Brasil e à humanidade." Ele
continuou: "Mas nem um tostão?" Eu respondi: "Nem um tostão." Ele falou: "Vou
pensar." Dias depois, ele voltou e disse: "Não aceito. Sou espírita. Cometi muitos crimes
numa encarnação anterior, e agora esta úlcera é uma provação. Quando eu me
reencarnar, então, não terei mais úlcera e não terei mais esses sofrimentos todos. É uma
2 Em russo, no original, significa movimento espontâneo.
provação. Deus quis assim, Jesus Cristo quis assim, e isto ainda é uma bênção." Eu aí
dei uma tunda danada em Alan Kardec e na religião, mas ele ficou irredutível. Eu lhe
disse: "Você vai morrer, dá gangrena, e você morre." Tempos depois pedi notícias dele,
e ele tinha falecido. Era um ambiente assim.
M.C. - Quer dizer que a massa do operariado era toda...
O.B. - É; operários, assim, empesteados de fetichismo, de espiritismo, de catolicismo
misturado com fetichismo. Era uma luta muito grande e muito difícil.
M.C. - Mas que tipo de organização era a Congregação? Era um sindicato ou era uma
sociedade?
O.B. - Não era um sindicato; era uma associação, assim, para lutar pela reforma agrária,
no melhoramento das condições de vida e trabalho dos operários, por uma cultura
nacional, para aproveitar o folclore alagoano, que foi e é muito rico. Tudo isto. Mas isso
foi 1918, veio 1919, e a Polícia esmagou tudo.
M.C. - E quais foram os resultados práticos da ação desenvolvida pela Congregação?
O.B. - Bem; melhor dizer sobre todo esse processo... como A Semana Social e tudo isso.
O resultado prático foi o seguinte: em certas fábricas, conquistamos o dia de oito horas e
aumento dos salários. Trabalhavam 12, 14, 16 horas! Conseguimos aumento dos
salários e liberdades sindicais e essas idéias todas foram sendo espalhadas entre aqueles
intelectuais.
Imagina, houve uma exposição, com cento e tantos quadros. Eu fui à exposição.
Fui ver. Não havia um quadro inspirado por Alagoas. Nada. Nem a paisagem alagoana,
nem os homens alagoanos. Havia cópias de coisas japonesas, cópias de paisagens da
Europa, de Alagoas nada, nada. Uma escola de pintura, cento e tantos quadros, e não
havia um único de Alagoas. Então, fizemos um apelo para que se inspirassem na
natureza brasileira, no trabalhador alagoano, descrevendo a vida alagoana. E aí foram
surgindo. O Moreira e Silva passou a pintar homens e mulheres do povo: um vencido,
uma mulher fazendo renda e paisagens alagoanas. O outro, o Lima, este também
dedicou toda a vida às paisagens alagoanas. Paisagens lindas! Coisas maravilhosas.
Toda a vida, imagina! Em 1960, quando voltei a Alagoas, reencontrei-o. Ele me
prometeu um quadro, mas não deu. Dedicou toda a sua vida às paisagens, quer dizer, um
resultado concreto da nossa propaganda.
M.C. - E as reivindicações, como, por exemplo, aumento salarial, diminuição da jornada
de trabalho, foram conseguidas através de greves?
O.B. - Não; foram dessas agitações. Os patrões com medo! E os jornais escreviam:
"Maximalismo em Maceió! Cuidado! Perigo!" Era assim. Os patrões ficaram com medo.
M.C. - Quer dizer que eles concederam isso...
O.B. - Era a primeira vez, a primeira vaga de movimentos em geral. E eles diziam que
iam parar a fábrica. Os patrões ficaram com medo. Eram patrões muito reacionários,
muito atrasados, burrinhos, burrinhos. E, então, foram cedendo aqui, ali,
acolá. E os resultados só não foram maiores, porque, em 1919, como eu lhe disse, os 13
melhores militantes acabaram na cadeia de Maceió e os outros, espalhados aqui e ali,
perderam os empregos.
M.C. - Quais eram as principais pessoas que trabalhavam na Congregação Libertadora
da Terra e do Homem?
O.B. - Seu criado, Rosalvo Guedes, Alcindo de Oliveira, Umbelino Silva.
M.C. - Os mesmos que fundaram o Sindicato de Ofícios Vários?
O.B. - É; os mesmos.
M.C. - E, no campo, vocês conseguiram organizar um pouco os trabalhadores?
O.B. - Não, não; era muito difícil, muito difícil. No livro Caminho, eu escrevo que
chego num lugar e vem logo a religião: "Mas Deus fez o mundo assim, desde o começo
do mundo. O trabalhador ali, no cabo da enxada; e os donos das terra. É o Senhor. Foi
Deus quem fez assim. E o senhor quer acabar com isso?" Outros faziam outras
alegações. E, no final, os mais inteligentes disseram: "Bem; suponhamos: nós dividimos
a terra, retalhamos a terra, acabamos com isso. Vem o soldado imediatamente de
Maceió. O senhor garante que o soldado não virá para retomar a terra, restituir a terra ao
dono?" Eu não podia garantir. Eles falavam: "E como é que o senhor propõe uma coisa
que não pode garantir?" Então, eu vi que aquela propaganda não daria nada, que
teríamos que rolar muitos anos, teríamos que estudar a questão agrária a fundo, criar
organizações próprias para poder fazer alguma coisa no campo.
M.C. - Vocês não tiveram tempo de criar essas organizações próprias?
O.B. - Não; nós queríamos criar. Aliás, a Congregação Libertadora da Terra e do
Homem já era com esse espírito. Nós pregávamos a revolução... A revolução não, a
reforma agrária, o imposto sobre herança - que seria dedicado à compra de terras, que
seriam entregues aos trabalhadores.
M.C. - E quando a Congregação foi fechada?
O.B. - Nós é que a fechamos por que não podíamos mais nos mover. Na cadeia de
Maceió, todo o tempo, um sujeito do lado de fora das grades ficava me olhando. Quando
saí, perguntei: "Quem é esse sujeito?" Disseram: "É o Horato Maurício; é um pistoleiro
político. Tem promessa de ser oficial da Polícia Militar de Alagoas, caso liquide você."
E os amigos diziam: "Não saia de noite. O Horato Maurício está aí de tocaia, esperando
para matá-lo." E, no final, em março, fui preso.
M.C. - Março de que ano?
O.B. - De 1919. Fui preso na cadeia de Maceió.
M.C. - Você foi preso por quê?
O.B. - Porque fui visitar o Rosalvo Guedes. Solidariedade moral. O Rosalvo Guedes foi
preso porque descobriram que foi ele quem mandou imprimir o manifesto. O tipógrafo
denunciou. Mais um manifesto. Então, os amigos me diziam: "Não saia de noite, que o
Horato Maurício liquida você." E o secretário do Interior disse à minha família, ao meu
tio, Manuel: "Não me responsabilizo pela vida de Otávio Brandão." Ele manda matar e,
depois, a família estava avisada... Minha família ficou aterrorizada. Eu não podia mais
me mexer, vivia vigiado pela família, que se opunha que eu partisse. No final, eu
organizei a fuga. Corri para Jaraguá, comprei uma passagem com o nome mudado e
saltei no Rio de Janeiro. A família disse: "Volta." Eu levei 41 anos sem poder voltar.
Escrevi aos amigos: "Eu agüento a cadeia de Maceió e agüento uma surra. [riso] Posso
voltar?" Os amigos diziam: "Não volte. A questão não é de cadeia, nem de surra, é que
liquidam você. Você prejudicou os agentes do imperialismo, com a luta pelo petróleo;
prejudicou a Igreja Católica, explicando a origem da terra alagoana durante milhões e
milhões de anos sem Deus; prejudicou os burgueses, lutando pelo dia de oito horas; e
prejudicou os seus parentes latifundiários, pregando a divisão das terras, a terra ao
trabalhador de enxada. Não volte, não volte." E rolaram 41 anos sem que eu pudesse
voltar.
M.C. - Havia alguma ação organizada por parte dessas forças contra o movimento de
vocês?
O.B. - Sobretudo com a guerra, já houve uma mobilização, porque os Aliados tinham
agentes pagos por toda a parte. Foram eles que organizaram esse comício, que depois
desfilou para liquidar o Canelas. Havia o governo; havia a Igreja Católica, que botava
aqueles artigos: "Maximalismo em Maceió." Pavor, havia um ambiente de pavor. E eu
era considerado o chefe, o dirigente.
M.C. - Havia sindicatos da burguesia em Maceió?
O.B. - Não, não.
M.C. - Eles não eram organizados?
O.B. - Havia a Associação Comercial, que era um centro de reação e de tudo mais. Eram
burgueses muito reacionários e burros, ignorantes até. Muito ignorantes. Tinham medo.
Tinham medo de tudo: medo de Deus, medo do Diabo, do inferno, medo de tudo.
Morriam e deixavam lá no testamento: tantos contos de réis para dizer tantas missas,
para construir uma igreja, para isso e para aquilo.
M.C. - E quando é que vocês fecharam a Congregação Libertadora?
O.B. - Ela morreu em 1919.
M.C. - E o Sindicato de Ofícios Vários também morreu?
O.B. - Bem; a Polícia invadiu, bateu, deu surras de sabre, imagina você! Batendo, assim,
nos operários e fechou aquilo tudo.
M.C. - Também em 1919?
O.B. - Sim; em 1919.
M.C. - E essa invasão foi provocada por algum movimento?
O.B. - Não; nenhum movimento. Então, o ambiente era assim, de pavor, no meio
daquela pequena burguesia e da grande burguesia.
M.C. - Existiam em Maceió organizações operárias ligadas à Igreja Católica?
O.B. - Não; a Igreja só pensou nos operários muito depois. [riso] Antes, ela combatia a
reforma agrária e dizia: "Nada disso. A terra pertence a Deus; ninguém pode tocar na
terra" E uma das razões da condenação da Igreja também foi essa. Eu queria a reforma
agrária, e a Igreja era contra. E a Igreja não pensava nos operários. Os operários,
largados, abandonados. Depois, a Igreja, muito esperta, muito politiqueira, começou a
criar esses sindicatos operários [riso] e, ultimamente, é a maior propagandista da
reforma agrária. Eu digo: "Quem te viu, quem te vê!" [risos]
M.C. - Quais eram os setores mais ativos entre o operariado?
O.B. - Havia alfaiates artesãos, que não eram bem operários, eram alfaiates artesãos;
havia a construção civil; havia um ou outro tecelão; havia empregados no comércio, que
eram muito ativos; havia gráficos, mas estes não se diziam operários: "Eu sou artista."
[riso] Eu achava uma graça enorme e perguntava a eles: "Por que você não é operário?"
Eles me respondiam: "Não; operário é uma categoria inferior. Eu sou artista." [riso]
M.C. - Isso entre os gráficos?
O.B. - Sim; diziam: "Eu sou artista." Não eram operários. Para você ver a mentalidade!
E a lutar contra essas muralhas todas, um pequeno grupo corajoso, bravo. Eu dou os
nomes deles no livro O caminho. Precisava muita coragem, desprendimento, porque,
por exemplo, Rosalvo Guedes passou anos e anos desempregado, passando
necessidades.
M.C. - Não conseguia emprego.
O.B. - É; depois, era o pavor. Encontrei-o, em 1960, magro, envelhecido, doente, um
filho louco. Uma tragédia.
M.C. - Mas você me contou que os comerciários participaram daquele movimento
provocado pelo seu artigo na A Semana Social, ao lado dos estudantes, movimento
contra o Canelas, não é? Agora, você me falou que eles eram um setor bastante ativo,
mas...
O.B. - Empregados no comércio, mas era uma minoria. Ao passo que ali, contra nós,
era uma multidão, mobilizada pelos agentes dos Aliados. Era uma multidão...
M.C. - Quer dizer que desses setores todos...
O.B. - O mais ativo era aquele pequeno grupo de empregados no comércio; o Umbelino
Silva, Faustino de Oliveira, e este outro que eu disse o nome, que foi preso e eu fui
visitá-lo na cadeia... o Rosalvo Guedes, que também era empregado no comércio. Todos
esses eram os mais ativos. O trabalho de Canelas rendeu, espalhou-se, mas o jornal foi
fechado, Canelas foi embora. A penetração no meio dos operários ficou mais difícil,
porque não tínhamos mais um jornal, só um manifesto de tempos em tempos. Ao passo
que com A Semana Social, aquilo ia penetrando nos operários em Maceió.
M.C. - Quer dizer que o Sindicato de Ofícios Vários era pequeno, não é? Era um
sindicato pequeno.
O.B. - Sim; mas num comício que fizemos na sede do outro sindicato, apareceram
tantos trabalhadores, que no final eu falei da janela do sindicato. E o trabalhador ficou
ali. Esse sindicato ficava na praça da cadeia. Eu olhei assim, vi a cadeia e disse: "Mau
negócio. [riso] Nós escolhemos uma sede, que daqui não teremos que caminhar muito
para ir parar na cadeia."
M.C. - E sindicatos amarelos existiam em Maceió?
O.B. - Não; não havia. Bom, parece que havia no cais do porto. Uma vez Oiticica fez
uma conferência lá.

(...)"

Nenhum comentário: