14.3.07

Outra Alagoanidade


Outra Alagoanidade
Golbery Lessa*
O que é alagoanidade? A quem interessa? Deve ser mantida na sua configuração atual ou precisa ser reconstruída? Como a alagoanidade se insere no moderno? Qual sua relação com as questões agrária, étnica, de gênero, social, democrática e republicana? São essas algumas das perguntas que se fazem hoje os nossos viventes. Houve vários outros momentos históricos nos quais existiu a urgência de identificar e responder essas questões. Cumprindo o destino de todas as identidades que relacionam uma população, um território e um aparato de estado, a alagoanidade teve que se reinventar ao longo da história, notadamente quando foi exposta a desafios colocados pelas várias etapas de modernização experimentadas pelo seu entorno.
O local foi periodicamente posto em cheque pelo regional, o nacional e o global; teve que lutar para adequar as suas relações sociais e visões de mundo às novas realidades circundantes. Mas é decisivo lembrar que o atraso radical da modernização em Alagoas, que constituiu um processo histórico extremamente marcado pela lentidão, torna um grave erro a tendência de superestimar a identidade entre o conteúdo das etapas de desenvolvimento exógeno e as modificações da alagoanidade. Do ponto de vista do desenvolvimento das etapas pelas quais passa o sistema capitalista na sua forma clássica, o capitalismo alagoano está radicalmente atrasado; entretanto evidentemente esse abismo estrutural, essa diacronia lógica (no sentido da lógica do sistema na sua expressão clássica), convive com uma sincronia cronológica (ou seja, Alagoas está inserido no mesmo tempo objetivo do entorno, usa o mesmo calendário vigente em Pernambuco, São Paulo e Nova Yorque), o que tem implicações decisivas na própria maneira como o atraso alagoano se configura, se reproduz e convive com outras realidades.
A percepção dessas intricadas mediações auxilia-nos a explicar, por exemplo, fenômenos tão complexos quanto a lógica do desenvolvimento da música eletrônica em Alagoas. Circunstâncias práticas e o corolário de ideologia pós-moderna com o qual esse tipo de música tem sido envolvido determinaram, no caso da Inglaterra, que os bailes surgissem nos galpões das fábricas desativadas pela reestruturação produtiva dos anos oitenta do século XX; em terras caetés, os bailes têm sido realizados na estação ferroviária ou nos desativados armazéns de açúcar, expressões arquitetônicas do final do século XIX e símbolos de uma etapa incipiente do desenvolvimento capitalista. Estaria a música eletrônica fora de lugar em Alagoas? Aqui precisamos de Roberto Schwartz. Como ser pós-moderno numa formação social na qual o moderno não se completou e nem está em vias de completar-se? Essa carência de chão social adequado para sua reprodução clássica vivida pelo ponto de vista pós-moderno também acomete as visões de mundo liberal, social-democrata e marxista, embora está última perspectiva possa compreender melhor o imbróglio por ter um compromisso radical com a percepção das contradições do sistema e, portanto, tenha potencialidade de apontar saídas para o impasse.
A identidade alagoana não é a soma aritmética de todos os costumes dos habitantes desta terra espremida entre a Bahia, Sergipe e Pernambuco; também não é a consciência que os alagoanos podem ter de suas singularidades culturais e de sua história comum. A alagoanidade não é só um fenômeno subjetivo, não é apenas um estado de consciência ou um jeito próprio de cada alagoano expressar sua individualidade, no sentido de possuir essas ou aquelas atitudes mentais. A alagoanidade é o conjunto articulado de sistemas que estruturam a formação social alagoana e possui singularidades em relação aos conjuntos análogos de outras formações sociais. Nesse sentido, a descrição analítica da alagoanidade passa pelo desvelamento das peculiaridades das nossas relações sociais básicas, das especificidades do relacionamento entre estas e o espaço geográfico em que se dão e das singularidades dos complexos sociais nos quais a subjetividade tem maior peso (arte, ciência, direito, culinária, folclore etc).
É comum se dizer que cultura é tudo aquilo que o homem cria e vive. Esse conceito torna-se muito próximo do conceito de práxis desenvolvido por K. Marx em suas célebres Teses sobre Feurbach, e significa a atividade própria do ser humano, que relaciona de maneira peculiar e complexa a subjetividade e a objetividade. Entretanto a maior parte da reflexão sobre a cultura acabou relegando a lição marxiana e dissolvendo a objetividade na subjetividade. Ora, mas o modo de produção também é cultura; é criado e vivido pelos homens; trata-se de um sistema de relações entre seres humanos, em que naturalmente estão presentes várias das dimensões da subjetividade, a partir do qual a sociedade distribui importantes elementos objetivos, como trabalho, o tempo livre e a riqueza socialmente produzida.
É fértil procurar no sistema econômico singularidades que são pólos de reprodução de singularidades de outros complexos da práxis alagoana. Isso não significa desprezar ou diminuir a importância da lógica interna de cada complexo social específico, como a arte, a culinária e as relações de gênero; significa apenas buscar conexões que são importantes para tornar as coisas caetés/palmarinas/calabarianas mais compreensíveis. Ao observar essas conexões, ao não restringirmos o conceito de cultura apenas à subjetividade e, portanto, substituí-lo pelo conceito de práxis, podemos perceber que o latifúndio canavieiro é tão alagoano quanto a violência política, o assassino de aluguel, o guerreiro, o pastoril, as praias, o rio São Francisco, a caatinga e a tradição religiosa e lingüística legada pelos bantos. O caráter oligárquico do poder político em Alagoas é tão alagoano quanto o sururu de capote. Isso implica, necessariamente, numa complexa atitude de aproximação e repulsa da alagoanidade. Para encontrar a saída do impasse, precisamos refletir sobre a consciência da alagoanidade, que por vezes é confundida com a alagoanidade em si. Antes, entretanto, é imprescindível fazermos uma rápida digressão teórica sobre os processos de construção das identidades nacionais.
Eric Hobsbawm, em seu erudito e esclarecedor livro Nações e Nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade, publicado pela editora Paz e Terra em 1991, corrobora a opinião de Otto Bauer, austro-marxista do início do século XX e um dos pioneiros dos estudos relativos à construção das interpretações sobre as identidades nacionais, quando este afirma que os movimentos nacionais tendem a percorrer três fases (ver o texto de Otto Bauer intitulado “A Nação”, in Gopal Balakrishnan (org) Um Mapa da Questão Nacional. RJ, Contraponto, 2000): 1) uma elite intelectual investiga as peculiaridades culturais e históricas de seu povo e propõe uma interpretação dessa identidade; trata-se de um momento de erudição e trabalho de pesquisa realizado por um conjunto pequeno e articulado de especialistas; 2) um número significativo de agitadores culturais e políticos fazem a propagada daquela interpretação da identidade nacional construída pelos acadêmicos e buscam estabelecer instituições públicas reprodutoras de suas idéias sobre a nacionalidade; 3) a interpretação proposta pelo grupo de eruditos e pelos agitadores culturais é aceita pela maior parte do povo e torna-se elemento componente do senso comum; o que ajuda a consolidar a unidade nacional e constitui uma das principais bases da formação de um Estado com soberania sobre um determinado território e uma população definida.
Otto Bauer, por encontrar-se no Império austro-húngaro, que estava eivado de nacionalidades mobilizadas, preocupava-se em demonstrar aos companheiros marxistas a necessidade de tratar teoricamente a questão das nacionalidades; procura então sublinhar principalmente as relações entre nacionalidade e classe social, desenvolvendo a tese de que em várias sociedades capitalistas da época as classes dominantes não estavam permitindo que o proletariado tivesse acesso à nacionalidade, ou seja, não demonstravam interesse de efetivar a terceira etapa de desenvolvimento dos movimentos nacionalistas. O proletariado alemão, por exemplo, estaria sendo impedido pela burguesia de ter acesso ao rico acervo da cultura erudita germânica, fato que seria demonstrado pelas dificuldades de os operários terem acesso à escola e à leitura. O austro-marxista reivindicará, em conseqüência, a socialização da identidade nacional. É importante observar que Otto Bauer não incluirá as singularidades do modo de produção de um povo no conceito de identidade nacional, que define como a consciência que uma população tem de uma trajetória histórica e cultural comum.
E. Hobsbawm, egípcio que foi muito bem acolhido na Inglaterra e desenvolveu uma profunda ligação com este país, está preocupado em justificar a existência do Reino Unido e, conseqüentemente, em tratar sem grandes romantismos as causas dos nacionalismos escocês, gaulês e irlandês. Procura demonstrar, entre outros pontos relevantes de sua fértil abordagem, o fato de ser muito comum que as interpretações das identidades nacionais elaboradas pelas elites acadêmicas estejam muito em desacordo com a realidade histórica e cultural, ou seja, grande parte do conteúdo dessas interpretações que fundamentam os movimentos nacionalistas são invenções, construções aleatórias, projeções do desejo de enaltecer a trajetória de um povo, tornando-a mais heróica do que realmente foi. Assim o autor demonstra, por exemplo, que somente dois e meio por cento dos habitantes da Itália falavam o moderno italiano quando ocorreu a unificação do país na segunda metade do século XIX. Fato análogo ocorreu na Alemanha, cuja língua tornada oficial só era conhecida por uma minoria erudita no momento da unificação. De modo análogo, no começo do movimento nacionalista irlandês, os militantes ensinavam de manhã para o povo os rudimentos de sua a antiga língua que estavam aprendendo à noite. Enfim, esses e outros fatos configurariam o que o historiador vai denominar de “invenção das tradições”.
Essas e outras reflexões sobre os movimentos nacionais podem ser adaptadas para discutirmos a questão da alagoanidade e de outras identidades estaduais, já que aqui também se trata de um processo no qual uma população luta para ter consciência de sua especificidade e para constituir instituições políticas com determinado grau de poder sobre um território específico. A principal diferença entre os dois fenômenos reside no fato de que, a partir de um determinado momento, essas “nacionalidades” aceitaram-se como partes de uma nacionalidade mais ampla, constituindo uma federação. Em vários casos essa aceitação não foi pacífica e teve muito de pura e simples imposição pela força das armas, como nos clássicos casos de Pernambuco e do Rio Grande do Sul. O conflito entre centralização e descentralização política na história brasileira tem evidentemente uma relação forte com a definição das bases da nacionalidade. Aureliano Candido Tavares Bastos, sem dúvida uma das mais importantes personalidades alagoanas, foi o primeiro grande defensor teórico dos direitos políticos e culturais das então províncias brasileiras.
Sabe-se que Téo Brandão, nosso admirável folclorista, preocupou-se em aprofundar seus conhecimentos de heráldica para, na segunda metade da década de cinqüenta, propor um novo brasão e uma nova bandeira para o Estado de Alagoas. Como outros indivíduos da época, acreditava que os símbolos vigentes até então não representavam adequadamente a história e a cultura alagoanas e teriam sido compostos sem o respeito aos mais razoáveis padrões heráldicos. O novo brasão ostenta as cores dos folguedos alagoanos, os símbolos dos três primeiros povoamentos, os ramos das duas principais culturas do Estado, uma estrela expressando o pertencimento de Alagoas à Federação e três tainhas herdadas da iconografia holandesa, representando Marechal Deodoro e as lagoas. A sociedade civil formadora de opinião e os poderes públicos aceitaram o novo brasão e a nova bandeira e estes passaram a fazer parte do senso comum e da vida cotidiana de todos alagoanos. É evidente que os símbolos propostos no novo brasão e na nova bandeira e mesmo a heráldica utilizada representam apenas uma das formas possíveis de perceber-se o passado e a cultura de Alagoas, do mesmo modo que os símbolos e a “heráldica” do brasão e da bandeira anteriores. Não há, por exemplo, referências ao Quilombo dos Palmares, que é um dos fatos fundadores da nossa história e contemporâneo do período holandês tão bem contemplado nos novos símbolos oficiais. Téo Brandão não foi só um grande folclorista, foi um dos contemporâneos mais ativos na construção de uma consciência da alagoanidade. A história de sua decisão de mudar o brasão e a bandeira (que se estendeu para o brasão e a bandeira de Maceió) revela a efetivação, numa determinada escala, das três etapas geralmente percorridas, segundo Otto Bauer, por propostas de identidade que relacionam uma população e uma máquina estatal.
No interior de cada época de elaboração da consciência da identidade alagoana as perguntas e as respostas foram naturalmente variadas, já que as diversidades regionais, municipais, éticas, econômicas, políticas e de gênero, entre outras, marcaram este solo como ocorre em qualquer formação social e, em conseqüência, semearam várias visões de mundo convivendo no mesmo espaço e no mesmo tempo. A diversidade de olhares no interior de cada época não evitou convergências, influências e acordos parciais, conscientes e inconscientes; isso ocorreu pelo fato de que a unidade de cada formação social impõe zonas de consenso até para os grupos sociais mais antagônicos entre si. O empresário mais neoliberal e o operário mais socialista precisam, por exemplo, de um ordenamento jurídico coerente que regule os vários momentos dos conflitos em torno da renda, das políticas públicas e de outros aspectos; precisam igualmente de uma língua comum e de um único sistema de pesos e medidas que facilitem a existência local das relações sociais básicas.
Nos casos das formações sociais que possuem mais de uma língua, as pessoas se acostumam a falar duas ou mais línguas para poderem se comunicar com os outros grupos. Um sotaque próprio de cada região ultrapassa as barreiras de classe e de etnia, convivendo com formas de falar próprias de cada um desses grupos. A língua de Alagoas é falada pelo usineiro e pelo pescador, mesmo que os diferentes anos de escolarização, a distinto acesso às viagens internacionais e os diversos contatos com a mídia e as tradições imponham divergências significativas no que se refere a determinadas pronúncias e mesmo no que toca às expressões utilizadas. Muitos brasileiros apreciam as interpretações de Djavan e não percebem que estão rendendo homenagem a uma das modulações do falar alagoano, na sua vertente maceioense, que sintetiza a língua originária da região portuguesa do Minho (região de onde provavelmente vem parte da prosódia de Maceió) e toda a herança de falares negros e caboclos específicos falados pelas populações trabalhadoras da capital. A mãe soprou-lhe a África nos ouvidos, os professores do Liceu Alagoano ensinaram-lhe as formalidades da gramática oficial e a fala da classe média, o menino sintetizou as fontes e produziu uma poesia de universalidade arrebatadora. Sofisticação inexplicável para quem não conectá-la às suas origens sociais e culturais.
A necessidade de complexos sociais que estruturem a formação social de Alagoas impõe algumas identidades às interpretações da alagoanidade propostas pelos vários grupos sociais (“interpretações” numa sentido muito amplo, que incorpora desde as opiniões do senso comum até as visões mais sofisticadas). Várias condicionantes constituíram em cada momento uma zona de acordo (limitada, mas efetiva) entre as diversas interpretações da alagoanidade conectadas a cada grupo social, Uma espécie de fundo simbólico comum que é imprescindível para operacionalizar dimensões importantes do cotidiano da reprodução social. Isso ocorre, por exemplo, no espaço das interpretações da economia propostas pelas duas classes sociais que possuem os interesses estratégicos mais antagônicos: o assalariado e o capitalista. O fato de o crescimento econômico tender a aumentar os salários e as oportunidades de emprego faz com que os trabalhadores alagoanos não sejam por princípio contrários aos planos de desenvolvimento da economia local, inclusive se estes planos representarem apenas etapas da tradicional modernização conservadora. Mesmo um líder operário marxista e com plena consciência de classe será obrigado a levar em conta a existência de uma realidade chamada “economia alagoana”, que se contrapõe, até certo ponto, às economias de outros Estados brasileiros. Desse modo, é certo que os assalariados alagoanos fazem coro com os capitalistas na defesa de mais verbas federais para Alagoas, mesmo que discordem destes na maneira de aplicá-las e no tipo de desenvolvimento e sociedade que aspiram.
Esse fundo simbólico comum de interpretação da alagoanidade é freqüentemente mistificado, no sentido de ser interpretado como prova de uma pretensa harmonia essencial entre classes, etnias e outros grupos sociais. Operação de mistificação que fica ainda mais deplorável quando é adicionada à transformação ideológica desse fundo comum em uma pretensa verdadeira, metafísica, atávica e imutável alagoanidade. O crime político, por exemplo, pode ser por este caminho naturalizado como uma derivação necessária e insuperável da natureza violenta do homem alagoano. A monocultura, por sua vez, também pode ser apresentada como imprescindível para a preservação de uma etérea alagoanidade, que transita num mundo mágico de arquétipos impregnados do cheiro doce do mel, da pretensa bondade no tratamento dos escravos e de uma bela paisagem marcada pelas ondas que o vento espalha nos canaviais. Para evitar este caminho é preciso compor, por exemplo, uma abordagem historiográfica da figura de Floriano Peixoto que não fortaleça o mito da violência inata do alagoano. O habitante de Santa Catarina teve o nome de Floriano imposto à sua capital, após ter visto vários concidadãos serem fuzilados pelo presidente; é fácil para o catarinense acreditar no mito da violência inata do alagoano, principalmente se o próprio alagoano o reforçar sublinhando os aspectos mais negativos do governo do marechal.
Evidentemente houve sempre interpretações hegemônicas sobre a alagoanidade, que geralmente estiveram associadas, como ocorre em toda sociedade de classe, às idéias e interesses dos grupos que estiveram no cume da pirâmide social. Entretanto é importante deixar evidenciado que os oprimidos sempre lutaram no campo simbólico, nunca foram ideologicamente passivos desde Zumbi dos Palmares, passando pela resistência indígena até chegar aos modernos sindicatos e movimentos agrários. A história é muito mais rica do que revela uma abordagem do tipo “malvados e coitados”, na qual uma visão paternalista, mesmo que bem intencionada como todas que calçam o inferno, acaba negando a dignidade dos oprimidos por percebê-los como vítimas inertes do destino. As interpretações hegemônicas da alagoanidade tiveram que conviver com várias insurgências que, em diversos momentos históricos, pareceram mesmo ameaçar-lhes. A obra de Graciliano, por exemplo, é uma bomba nuclear desconstruindo a visão dominante da alagoanidade; do ponto de vista dos argumentos literários, não fica pedra sobre pedra do status quo e, certamente por isso, a capital alagoana não possui uma estátua do nosso maior romancista.
No presente, como em vários momentos do passado, a sociedade civil local tem a sensação de que a consciência da identidade alagoana se esvai, que ela é frágil, qual uma chama de vela na ventania do processo de globalização. Percebe-se resistência em vários setores. Na academia, nas ONG’s, no jornalismo, nas artes, entre os trabalhadores e mesmo em alguns setores empresariais ligados ao mercado interno há muita inquietação em torno da alagoanidade. Por não perceberem um movimento análogo em torno da identidade alagoana, esses grupos olham para as vigorosas afirmações de identidade da Bahia e de Pernambuco com uma profunda dor. Qual seria a causa desse impasse, dessa impotência? Por que as várias interpretações da alagoanidade não têm sido revigoradas e nem têm contribuído para melhorar nossa auto-estima e a compreensão da realidade? Esse fenômeno pode ser explicado pelas características da alagoanidade em si, não simplesmente pela natureza de suas interpretações.
As singularidades da formação social alagoana têm determinado a constituição de interpretações hegemônicas da alagoanidade incapazes de cumprirem a meta de serem guias da nossa elevação a novos patamares civilizacionais. A particularidade do capitalismo caeté tem determinado uma consciência hegemônica da alagoanidade que não tem todos os elementos necessários para estabelecer as condições subjetivas de desenvolvimento desta formação social. O sentimento de sermos desterrados em nossa própria terra, a sensação de identidade esvaziada e sem auto-estima, a desvalorização da cultura local são elos necessários no processo de reprodução da incompletude e do caráter hiper-atrasado do sistema capitalista alagoano.
O principal núcleo da nossa economia, a monocultura de exportação, que prevalece desde a época colonial, por complexas razões históricas submeteu a manufatura (o engenho propriamente dito, os equipamentos de elaboração do açúcar) e depois a indústria (a planta fabril da usina) à lógica econômica da agricultura de exportação e a seus problemas estruturais, principalmente a vulnerabilidade às intempéries, a dependência do mercado externo e a lenta rotação do capital (que implica numa queda acentuada na massa de lucros); esta submissão do historicamente novo ao historicamente velho teve impactos desastrosos para o desenvolvimento do capitalismo em Alagoas, abrindo espaço às características mais desumanas deste sistema em detrimento de seus aspectos progressistas. A divisão social do trabalho foi paralisada, a sociedade continuou essencialmente rural, a existência de novos setores econômicos decisivos foi inviabilizada e o mercado interno tornou-se radicalmente restringido.
O principal setor da economia alagoana há mais de quatrocentos anos vende seus produtos para consumidores finais que não se encontram no nosso território, falam outras línguas e em muitos casos nem sabem da localização do Estado no mapa-múndi. O consumo interno é irrelevante para este setor da economia (Alagoas consome, atualmente, apenas dois por cento do açúcar que produz) e, em conseqüência, não entra no cálculo empresarial. Como demonstrou K. Marx, a produção capitalista cria tanto a mercadoria quanto constrói o seu próprio consumidor. No caso alagoano, há um distanciamento geográfico radical entre os dois pólos, o que inviabiliza a existência da forma mais progressista do ciclo econômico. Este fato, que é uma das expressões da paralisia da divisão interna do trabalho, tende a construir uma formação social abstrata, sem instituições sociais bem estruturadas que possam se articular e fundamentar um vigor coletivo.
A ruralização da indústria alagoana, que restringe muito a massa de lucros devido à lentidão que impõe à rotação do capital industrial, determina entre os empresários uma corrida tresloucada pela diminuição dos custos, via diminuição radical dos gastos com mão-de-obra, aproveitamento desordenado da natureza, luta por subsídios públicos, busca de moedas estrangeiras fortes (daí a preferência pela exportação para mercados de outros países) e o monopólio da renda absoluta da terra (a renda absoluta da terra é uma espécie de imposto que a sociedade toda paga ao proprietário rural sem que este precise investir um centavo em troca; está renda absoluta é distinta do lucro sobre o investimento na terra, o qual é proporcional ao capital que foi investido e à taxa de mais-valia obtida). Não se tratam de livres escolhas individuais de investimento; é a própria estrutura secular da economia que impõe suas necessidades retrógradas de reprodução à consciência da classe empresarial. O impacto dessa realidade objetiva e subjetiva tem um efeito extremamente negativo no desenvolvimento da consciência da alagoanidade.
Um dos principais resultados das circunstâncias econômicas apontadas e do divórcio entre a classe empresarial e as tendências mais progressistas do capitalismo é a extrema impotência da sociedade civil organizada, elemento que na modernidade é o esteio da identidade local, das instituições republicanas e dos valores democráticos, bem como das possibilidades da construção de perspectivas alternativas aos modelos sociais vigentes. A sociedade civil apresenta-se enfraquecida pelo fato de constituir-se de sujeitos sociais (classes, etnias e outros grupos) sem a completude, sem a inteireza, sem o pleno desenvolvimento econômico e social que possuem em sociedades de capitalismo mais desenvolvido; essa falta de completude se expressa em várias formas de incompletude política, cultural e ideológica, o que dificulta a constituição de um espaço republicano e capaz de mediar de modo civilizado distintos e claros projetos de sociedade.
Por capitanearem um modelo econômico capitalista que, contraditoriamente, paralisa os desenvolvimento qualitativo do próprio sistema, o núcleo principal dos empresários alagoanos aparta-se da visão liberal clássica da economia, que propugna a revolução constante do modelo econômico e o aumento contínuo da divisão social do trabalho, e aproxima-se de uma perspectiva conservadora e pouco sistemática da realidade local; isso torna muito frágil a situação do status quo em qualquer arena discursiva mais sofisticada, como a Universidade. Na verdade é impossível, sem se afirmar disparates, defender cientificamente o modelo, econômico, social e político vigente em Alagoas. Desse modo, a sociedade civil fica sem o auxílio dos mais poderosos de seus membros para elevar-se aos mais altos padrões políticos, ideológicos e culturais. Isso explica a irrelevância das verbas que as instituições culturais alagoanas recebem das maiores empresas locais; fenômeno bem diferente do que ocorre, por exemplo, nos EUA, país no qual várias grandes empresas financiam generosamente bibliotecas, museus e outras iniciativas.
Enfim, a interpretação hegemônica propõe sub-repticiamente uma alagoanidade tímida, cabisbaixa, carente de auto-estima, violenta, elitista, paternalista, hipocritamente racista, conservadora, passiva, apartada do compromisso com o progresso e a igualdade social, os valores democráticos e o aperfeiçoamento das instituições republicanas. É, como toda interpretação de uma identidade, tanto uma versão sobre o que existe quanto uma projeção sobre o que deve ser. Faz uma seleção dos piores aspectos que impregnaram a história alagoana, procura lhes dar um aspecto palatável, e os eleva à categoria de arquétipos imutáveis do homem alagoano. A violência seria apenas outro nome para a valentia; a timidez política seria expressão do desejo de ordem; o elitismo representaria a fidalguia; a monocultura seria uma vocação natural, um destino manifesto; o racismo nunca teria sido marcante e os escravos sempre teriam sido bem tratados; o conservadorismo é apresentado como um trunfo contra as idéias socialistas.
É necessária uma nova interpretação da identidade alagoana para que possa existir uma nova alagoanidade. Milhares de camponeses, trabalhadores assalariados, pequenos e médios comerciantes ligados ao consumidor interno, profissionais liberais, funcionários públicos das três esferas, índios, sem-terras, remanescentes de quilombos, aposentados, jovens e outros grupos sociais são o esteio objetivo da inquietação atual em torno da alagoanidade. O aumento significativo das verbas federais tem provocado, nos últimos vinte anos, o desenvolvimento de várias dimensões do mercado interno, principalmente no comércio e no setor de serviços, que são essencialmente independentes do núcleo central da economia alagoana; esses resultados econômicos positivos das políticas públicas federais, que representam um fortalecimento da União em relação ao Estado, aumentam o espaço democrático e a possibilidade de intervenção dessas camadas sociais no debate político e cultural. Esses setores têm a possibilidade de interessar-se por uma interpretação da realidade alagoana que venha a propor a superação das mazelas do passado e se fundamente em valores e conceitos coerentes com o patamar de desenvolvimento já alcançado pela humanidade. Talvez já existam as condições de a formação social alagoana alcançar à sua autoconsciência e superar a interpretação tradicional de si mesma, de chegar, portanto, à compreensão das suas reais necessidades históricas, momento imprescindível para a construção de uma outra alagoanidade._________________*Professor universitário, doutor em Ciências Sociais pela Unicamp