27.4.10
















CARNAVAL OPERÁRIO

Ivo dos Santos Farias

RESUMO

O carnaval aparece como uma manifestação extraordinária de uma coletividade que se faz presente em diversos povos, em várias regiões do mundo, criando uma espécie de “a segunda vida do povo” (BAKHTIN, 1987) ou numa dialética do trabalho e da casa, do cotidiano e do extraordinário (DAMATTA, 1997). Entretanto, o carnaval operário aqui estudado surge concomitantemente como meio de resistência, dominação, continuidade e/ou ruptura para com a vivência na vila operária de Fernão Velho, numa análise comparativa e simbólica entre dois diferentes blocos (o Ferruge e o Boi), existentes em dois diferentes momentos (o de vila operária e o de cidade dormitório, respectivamente).

Palavras-chave: Carnaval. Vila operária de Fernão Velho. Cidade dormitório.

1 INTRODUÇÃO

O carnaval é considerado uma das mais representativa e antiga manifestação coletiva da humanidade, na medida em que consegue passar por uma grande e variada quantidade de povos em todo o mundo, no entanto, o que marca sua existência é a necessidade de “uma alternância entre o tempo profano, caracterizado pelas rotinas do trabalho e pela vigência da ordem, e o tempo sagrado, marcado pelo desenfreamento coletivo e pelo excesso” (ALMEIDA, 2003, p. 13); ou seja, o carnaval caracteriza-se como “a segunda vida do povo” (BAKHTIN, 1987), por ser uma forma de burlar a seriedade e a oficialidade da vida cotidiana; ou até mesmo uma “inversão do cotidiano” (BURKE, 1993)

Entretanto, iremos fazer aqui uma análise comparativa entre dois blocos (o Ferruge e o Boi) situados na vila operária de Fernão Velho , e em momentos históricos diferentes (vila operária e cidade dormitório), a fim de tentar compreender a representatividade existente dentro destes dois carnavais, buscando perceber nestas festas os nexos com o cotidiano, com as relações sociais e relações de trabalho, construídas e incorporadas em cada um desses diferentes contextos históricos.

Todavia, para que entremos no “ritmo” deste carnaval operário (embalado pelo frevo) é necessário que tenhamos em mente a situação política, econômica e territorial no qual ele está inserido, com o propósito de conseguirmos visualizar suas características, bem como sua constante analogia simbólica, enquanto um dos responsáveis pela criação de um “habitus” do “agente em ação” (BOURDIEU, 2007), peculiar a esta forma de administração da força de trabalho, ou seja, o “sistema fábrica com vila operária” (LEITE, 1988), que se fez presente entre meados e fim do século XIX até as décadas de 1970 e 80 no Brasil.

Nas duas próximas sessões, passaremos a adentrar no “mundo do carnaval” (BURKE, 1989) operário, de forma a buscarmos as relações simbólicas existentes nestes diferentes carnavais, correspondentes a situações de continuidades ou rupturas para com os modos de produção, servindo como caso limite dentro das relações sociais existentes na comunidade, pois a interpretação destas representações consiste num ato extremamente complicado, na medida em que condiz com a ousadia de interiorizar e compreender os nexos de uma metáfora que se realiza num “tipo coletivo” (DURKHEIM, 2008) peculiar, onde tal interpretação corre o risco de não estar em conexão com a realidade social correspondente.

Portanto, a abordagem que veremos a seguir está ligada a uma dialética do trabalho e da casa, do cotidiano e do extraordinário (DAMATTA, 1997), na medida em que se constrói como alternativa artística às relações de trabalho, ao mesmo tempo em que confirma as relações de poder, interessantes a grupos que bancam e patrocinam a festa (no primeiro momento a Fábrica, no segundo candidatos à política). Por isso que a tentativa de mergulhar na interpretação desta, como de qualquer outra, corresponde a um imaginário coletivo e de diversas maneiras de compreender.



2 O “FERRUGE” E O CARNAVAL CONSTITUÍDO SOB A POLÍTICA DE CONTROLE DE FORÇA DE TRABALHO

O bloco Ferruge foi criado em 1951, no auge de uma política de controle de força de trabalho denominada “sistema fábrica com vila operária” (LEITE, 1988) e, portanto, sua existência está metaforicamente ligada a uma possível dubiedade de interpretações, pois pode representar tanto uma rejeição à vida cotidiana, imposta pelas relações de trabalho e pelo controle patronal; como pode ser um dos mecanismos de controle utilizado pela fábrica como meio de confirmação das relações de poder, pois ao fim das festas ou dos rituais, todos voltam para casa e para a rotina do cotidiano, de volta à “realidade da vida” (DAMATTA, 1997, p. 39).

Entretanto, este bloco está inserido dentro da vila operária da primeira indústria têxtil do estado de Alagoas (União Mercantil Têxtil, atual fábrica Carmen), fundada em 1857, no atual bairro de Fernão Velho, “ainda no Brasil imperial e escravista” (ALMEIDA, 2006, p. 17), sendo que este tipo industrialização só terá o amadurecimento de seus ethos capitalista e das relações mercantis em Alagoas entre os anos 1930 e 1950, “passando a apresentar uma configuração que a colocava como pólo decisivo de uma alternativa econômica mais progressista” (LESSA, 2008), em contraposição a um tradicionalismo econômico colonial, onde predominava a cana-de-açúcar.

Entretanto, a condição de vila operária correspondia ao seu total domínio sob a fábrica, pois tal sistema está inserido numa política de controle da força de trabalho existente após a Revolução Industrial na Europa e tem, portanto, “o intuito de disciplinar tanto a sua vida profissional como o seu cotidiano para que pudesse render o máximo possível e evitar incidentes na vila-operária” (FARIAS, 2008). A materialização de tal fato é vista no oferecimento de casas, água, luz, espaços de lazer, festas, entre outras formas de promover “a vida extra-fabril da localidade” (LEITE, 1988, p. 17), sendo todas estas “benfeitorias” descontadas nos salários de seus trabalhadores. Tal aspecto dá condição para entendermos como é viva e contraditória a herança patriarcal e escravista dos antigos senhores de engenho no modo de produção capitalista brasileiro, porque apesar de estar inserido num sistema industrial e capitalista, onde todo pagamento é convertido em dinheiro, “desprovido de qualquer sentimento” (MARX; ENGELS, 1998, p. 12), aqui ainda prevalece a idéia de troca de “favores” como ideologia das relações de trabalho.

Também, podemos considerar que esta vila operária está historicamente sobreposta ao “estágio sólido da era moderna”, (BAUMAN, 2001, p. 20), porque parte de um período de necessidade de rigidez para com a criação de proletarização de uma classe não especializada, onde há uma carência de engajamento ativo do patrão com sua classe trabalhadora, pois ao mesmo tempo em que oferece estas “benfeitorias”, participa (vigia) pessoalmente também em muitas das festas (dos “rituais”), dos dias de lazer e das solenidades formais atuando como um pai extremamente zeloso para com seus filhos (a comunidade), os quais lhe garantiriam o lucro no dia seguinte, da mesma forma que sua presença em corpo reforça seu poder dentro deste modelo de relação social.

Neste contexto aparece o bloco que vai ter maior representatividade na vida carnavalesca e cotidiana desta comunidade, pois apesar de ter findado em 1995, consegue permanecer vivo e saudoso na memória dos que presenciaram e vivenciaram sua existência. Este bloco chama-se Ferruge.

Seu próprio nome pode indicar inicialmente uma tentativa de contrariedade com as máquinas, na medida em que a palavra ferrugem traz a visualização de uma corrosão dos ferros, o que pode representar metaforicamente uma aversão ao instrumento (não à pessoa) que lhe dá uma vida estafante e brutal. Assim, o que caracteriza o Ferruge – que saía às ruas nas segundas e nas terças feira de carnaval – é o fato de que as pessoas se sujavam de melaço, óleo queimado, lama, ovos e tinta; e, não só se sujavam, como sujavam toda a vila operária, desde as casas, os prédios, carros, ônibus ou qualquer pessoa transeunte ou que estivesse nas portas a olhar o bloco passar. Além disso, havia regras para quem participasse do bloco: homem não podia usar camisa, nem cueca, pois seriam rasgadas pelos demais foliões.

O que representa de fato o episódio de sujar os bens da fábrica? Seria algum tipo de manifestação de desregramento? Será algum tipo de anomia jurídica, tal como diria Durkheim (2004)? Seria uma forma de os operários manifestarem sua insatisfação para com o controle de suas vidas e de seu trabalho? Ou então seria uma forma de a fábrica “dar brecha” para desafogar o cotidiano de sua classe operária a fim de melhor controlá-las?

Estamos aqui numa grande e perigosa interpretação desta festa, pois nos posicionamos numa espécie de meio-termo das relações, na medida em que não a entendemos simples e unicamente como uma forma de controle, nem como uma forma de resistência organizada, ou seja, nenhuma das duas relações é autônoma, pois estão umbilicalmente entrelaçadas, porque o carnaval, com seu mundo de inversão, de não oficialidade e de comicidade, representa metaforicamente uma rejeição para com os traços concernentes à moral diária e às formas de poder em que cada sociedade está inserida; talvez ele represente um meio de se esquecer momentaneamente os acontecimentos cotidianos e o fechar-se num mundo peculiar, onde se apresenta como uma “peça imensa, em que as ruas e praças se convertiam em palcos, e a cidade se tornava um teatro sem paredes” (BURKE, 1989, p. 206).

Contudo, o momento do carnaval não distingue os atores sociais. Apresenta-os tão somente como membros uniformes de uma massa que se envolve, se mistura e que brinca, tal como diria um ex-operário desta fábrica, no documentário Memória da vida e do trabalho (BRANDÃO, 1986): “os quatro dias de carnaval você não se lembrava de nada na vida, só de Deus, porque era lindo, todo mundo brincava”. Vemos que tal fala faz paralelo com DaMatta (1997, p. 54): “o tempo do carnaval é marcado pelo relacionamento entre Deus e os homens, tendo, por isso mesmo, um sentido universalista e transcendente”.

Por isso, uma de nossas preocupações principais é entender o Ferruge não só enquanto acontecimento, mas compreender o que acontecia após estes quatro dias de carnaval, após a “quarta feira ingrata”, pois não queremos nos fechar em seu cotidiano, mas compreendê-lo enquanto mecanismo de resistência ou de controle dentro das condições materiais, políticas e econômicas apresentadas acima. O que representava os dias posteriores à Quarta feira de cinzas? Será o início da espera da próxima festa?

Acreditamos que o carnaval seja mais que um momento hermético, porque está relacionado com o terreno ao qual está inserido. No nosso caso, o bloco Ferruge finda em 1995, o que coincide com o fato de a Fábrica Carmen de fiação e tecelagem vender praticamente toda a vila operária e entregar grande parte de suas casas, como forma de indenização a seus operários, decretando estado de falência. Em 1997, a fábrica retoma suas atividades, mas agora sem envolvimento com a comunidade, pois enquanto que em seu momento de apogeu econômico chegava a possuir cerca de 5.000 operários, na sua volta de atividades, mal tinha 400 operários, devido principalmente ao desenvolvimento das máquinas, que substituía diversas sessões por uma única sala. Assim, não mais interessava à fábrica o antigo modelo de administração de sua força de trabalho, transformando a antiga vila operária em cidade dormitório e alterando radicalmente as suas relações sociais.

Portanto, nosso bloco está situado num contexto único à sua existência, pois ele representa o momento peculiar de uma comunidade que teve em si uma “violência simbólica” (BONNEWITZ, 2003) correspondente à sua forma de trabalho e de vivência de indivíduos e grupos que vieram de várias regiões do interior de Alagoas e que usou artifícios diversos para driblar as condições brutais que tal sistema lhes impunha e o Ferruge aparece como um dos maiores símbolos de criatividade de manifestação coletiva, porque apesar de ter sido mantido em sua maior parte pelos bolsos da fábrica, este bloco foi construído, idealizado, vivido e aceito por um grupo com identidade firmada nas relações de trabalho e na vivência na vila operária, e conseguiu perpassar sua época, sendo, como já dissemos forte elemento de reflexão sobre uma “identidade perdida” e saudosa. Segundo o depoimento de outro ex-operário, cantor da antiga orquestra local, afirma que o Ferruge surgiu da seguinte maneira:

O Ferruge, quem formou o Ferruge foi um lá da oficina, o Xixiu, o finado Xixiu é um dos fundadores do Ferruge. Então fizeram lá, eles conversando, ai vamos formar um bloco e tal, ai fizeram o bloco, né e botaram o nome de Ferruge. Quando saíram no primeiro ano eles saíram todo sujo, mas não sujava as casas não, sabe. Só eles mesmos quem se sujava de ferrugem da oficina, daquele pó e alguém que queria se sujar eles faziam assim e melava um pouquinho, mas depois virou bagunça (grifo nosso), saíram aqueles caras que tomavam conta do bloco, aí começaram rasgar roupa, jogar as coisas nas paredes, as paredes tudo limpinha e era a maior imundície (grifo nosso), mas que graças a Deus acabou, né. Eu queria que ficasse o bloco sem melar as paredes. Quando chegava perto de carnaval ninguém limpava as paredes, ninguém fazia nada, por causa do Ferruge, esse tal Ferruge, aí relaxou, Xixiu ainda ficou tomando conta uns tempos depois, depois se afastou acabou. (2008)

Assim, podemos entender neste breve relato da trajetória do tal Ferruge, como ele parece constituir-se inicialmente por uma certa ordem, uma sujar-se a si, mas não as casas e com o tempo virar bagunça. No entanto, é justamente na fase que vira bagunça que ele toma a sua maior dimensão representativa de sua inversão, de contrapor a uma ordem que se chocava com uma vida regrada pela rotina dos apitos impertinentes da fábrica, que ditava os horários de entrada, de saída, de acordar e de dormir de sua classe operária. Esta bagunça, esta imundície, portanto, são símbolos de uma alegria existente numa festa que se acaba, que perde seu sentido.

Contudo, os antigos atores não mais existem, as condições de inversão não são mais necessárias após o abandono do controle da fábrica e isso ocasiona um não entendimento do sentido de tal bloco que tem seu fim também devido a um tipo de violência diferente da anterior, que é a violência gerada por parte dos freqüentadores de outros locais, os quais não compreendem as “relações simbólicas” existentes naquele contexto.

Portanto, após o fim do Ferruge, o foco festivo da localidade de Fernão Velho tomará outra direção, a qual iremos analisar mais na próxima sessão.



3 O BOI NA CIDADE DORMITÓRIO

Ao analisarmos o Ferruge, pudemos perceber como esse carnaval operário esteve entrelaçado às relações sociais, políticas e econômicas existentes no contexto histórico peculiar a sua existência; e agora, como possível resposta dual a continuidades e/ou rupturas para com as antigas relações, estudaremos outro bloco correspondente a nova situação (de cidade dormitório) em que se encontra a comunidade. Este bloco denomina-se Boi.

No entanto, é-nos conveniente perguntar: quais representações estão contidas na figura deste Boi? O que representa ou pode representar um animal confeccionado como figura simbólica e metafórica de um bloco? Ele é um transbordamento ou um desligamento com a situação de dominação da antiga vila operária? Será simplesmente um mecanismo que os moradores desta comunidade criaram para reincorporarem, num dia do ano, o momento de identidade cultural e social que vivenciaram nos tempos da vila operária? Ou será uma forma de se desvincularem por completo de suas antigas relações?

A primeira discussão que aqui se deve proporcionar é a de que o carnaval desta comunidade não mais corresponde aos quatro dias que antecedem a quaresma (ou seja, o carnaval na data oficial do Brasil), mas nas festas de reis, ou seja, no dia 06 de janeiro ou no primeiro domingo do ano. Assim, a própria figura do boi , muito comum nos Reisados e Guerreiros alagoanos, aqui não mais corresponde ao fim das festas natalinas, mas a preparação do carnaval (carnaval que praticamente não mais existe na comunidade, pois no período do carnaval muitas pessoas se deslocam para outras localidades a fim de apreciarem os carnavais dos outros, justamente por não mais haver o entusiasmo para com as festas e rituais carnavalescos de seu lugar).

Contudo, este aspecto carnavalesco existente nas festas de reis não é tão estranha, pois segundo Théo Brandão (apud Nina Rodrigues, 1932, p. 263):

O rancho ou Reisado é um grupo de homens e mulheres, mais ou menos numeroso, representando pastores e pastoras que vão a Belém e que, de caminho, cantam, e pedem agasalho pelas casas de família. Os ternos não vão quase nunca à Lapinha, só cantam nas portas das casas conhecidas nas quais entram, comem e bebem e às vezes amanhecem dançando quadrilhas, polkas e valsas; todos eles cantam e dançam nas casas por dinheiro [...] num charivari impossível de descrever-se



A partir da descrição anterior, podemos perceber como o aspecto carnavalesco está entrelaçado às festas de reis, da mesma forma em que aparece nos mais variados folguedos, pois a relação religião e carnaval acaba sempre se misturando, porque “os festejos do carnaval, com todos os atos e ritos cômicos que a eles se ligam, ocupavam um lugar muito importante na vida do homem medieval [...] quase todas as festas religiosas possuíam um aspecto cômico popular e público, consagrado também pela tradição” (BAKHTIN, 1987, p. 4). Daí, podemos compreender as possíveis origens desta característica das festas religiosas, que apesar de o carnaval já existir em momentos mais antigos da história, a característica da ideologia e moral cristão só aparece na Europa a partir da época medieval e desemboca inconscientemente no imaginário contemporâneo como uma possível forma de resistência intrínseca às mais variadas formas de sociedade.

Entretanto, outro aspecto que é importante destacarmos refere-se as características da figura do boi, a qual sempre foi elemento primordial e de destaque nas festas de Reisados, pois

nos pobres ele é arranjado com uma cabeça legítima de boi, pintada, ou uma cabeça de boi esculpida em madeira que o dançador de ‘entremeio’, um tanto curvado, segura; enquanto que um grande lençol de chita, cheio de florões, recobre-lhe as costas, a imitar o corpo do boi (BRANDÃO, 1997, p. 86).

E, o que nos chama atenção é a aproximação das características deste boi dos reisados descrito pelo folclorista alagoano Théo Brandão, com o Boi de Fernão Velho, pois é interessante salientar que ele se diferencia bastante dos bois de concurso de carnaval de Maceió, onde toda sua confecção está repleta de ornamentação e brilho, além da diferença rítmica e de apresentação: o de Fernão Velho é um bloco acompanhado por orquestra de frevo, onde os atores se misturam; enquanto que o boi existente nos concursos de Maceió é de caráter apreciativo, de platéia, embalado por instrumento de percussão, com cantor e coreografias, em parte ensaiadas.

No entanto, o que nos convém aqui analisar é o aspecto simbólico deste Boi operário e a tentativa de compreender quais representações estão incutidas nesta festa, que, apesar de já existir desde a década de 1960 na comunidade, só veio a ter relevância a partir da desistência do Ferruge, em 1995; e, portanto, dentro das condições históricas de cidade dormitório. Isto é, o Boi tanto pode representar uma tentativa de trazer de volta uma “identidade perdida” (enquanto transbordamento das antigas relações sociais), na medida em que muitos dos antigos moradores se reencontram dentro do Boi e reconstroem temporariamente e inconscientemente o período de convivência na vila operária; da mesma forma que pode simbolizar um mecanismo de ruptura, de reinvenção, de uma manifestação autônoma e, no entanto, como recorte com as antigas formas de dominação.

Porém, a correlação do fortalecimento do Boi com o fim do Ferruge é-nos claro na fala de uma das organizadoras do bloco, quando diz que “o Boi é uma tradição de Fernão Velho. O Boi representa muitas coisas. Coisa que nunca teve aqui. Tinha o Ferruge, acabaram, aí ficou o Boi”; da mesma forma em que vemos este bloco vagarosamente tomar maior dimensão com pouca ou quase nenhuma interferência da fábrica, pois, segundo afirma o fundador do bloco:

esse Boi ta com tanto ano no mundo, tem mais de quarenta anos. Comecemos ele, saía numa caixa de sapato, sabe, numa caixa de papelão. Depois eu cismei de inventar esse Boi, de fazer esse Boi, aí virou tradição. [...] Aí saímos com lata veia, tocando na lata veia, depois a gente inventemos uma rifa falsa [...] Aí peguemos os instrumentos da escola de samba e encaixemos um bucado de surdo tarol, o diabo a quatro. Aí depois quando o Veríssimo pagou uma parte da orquestra, depois passou para o Hermínio ficou pagando, pagando, pagando, ai ficou essa multidão, aí a turma foi juntando, juntando. Porque no início era quatro pessoa acompanhando, agora ta aquele mundão como você vê, né.

Assim, podemos analisar esta festa sob estes dois vieses possíveis neste contexto intrinsecamente contraditório e ambíguo, que está pintado numa época pós vila operária, vila essa que constitui em relações capitalistas, com pinceladas de escravismo; ao mesmo tempo em que suas resistências podem velar, em alguns aspectos, a dominação imbricada em suas relações e representações dialéticas entre o “cotidiano” e o “extraordinário”, pois

o rito estando na sua situação extraordinária, ele se constitui pela abertura deste mundo especial para a coletividade. Não há uma sociedade sem uma idéia de mundo extraordinário, onde habitam os deuses e onde, em geral, a vida transcorre num plano de plenitude, abastança e liberdade. Montar o ritual é, pois, abrir-se para esse mundo, dando-lhe uma realidade, criando um espaço para ele e abrindo as portas para a comunicação entre o ‘mundo real’ e um ‘mundo especial’ (DaMatta, 1997, p. 38, 39).

Entendendo-se a festa como este momento extraordinário da comunidade, passamos a adentrar em sua dialética, em seu movimento dentro dessa dinâmica social que apesar de se inserir no período de “modernidade líquida”, que vivenciamos na atualidade, correspondente a um repúdio e a um destronamento do passado, desfazendo-se assim das tradições; e onde os “senhores ausentes” (isto é, a elite global contemporânea) não mais necessitam se engajar ativamente na vida das populações subordinadas (BAUMAN, 2001), nosso objeto acaba se contrapondo a este modelo, no momento mesmo em que a comunidade em estudo (como tantas outras) reanima seus laços através de uma tentativa de criar e preservar uma tradição simbólica numa “identidade perdida”.

Concomitantemente, o Boi não mais representa uma identidade operária, onde as ligações criadas pelas suas condições lhes ofereciam um ar de ambiente em família, mas sim uma certa distância para com os que participam, onde o sujar a si próprio e aos outros não é mais permitido, provavelmente a fim de evitar-se atritos entre os participantes, que se misturam entre moradores atuais, ex-moradores e pessoas “de fora”; e essa mistura não mais contem a unidade de relações de controle e de resistência social. Assim, o Boi é um mecanismo que abre espaço a reinventar possibilidades artísticas coletivas não mais presas às antigas relações, ao mesmo tempo em que sua dialética incorpora todo o processo e o espaço anteriores que permitiram sua criação.

Sendo assim, o Boi pode representar uma grande variedade de interpretações, na medida em que meche com o imaginário de seus participantes e dos espectadores que saem à porta para ver o bloco passar. O carnaval é por si mesmo um momento de excitação dos sentimentos, das memórias e, portanto, do saudosismo. Sua constituição está imbricada numa dialética, numa negação de si para afirmar-se enquanto produto de uma coletividade e o Boi é atualmente o símbolo maior desta dialética nesta comunidade.



4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pudemos perceber que não há como dissociar a existência destes blocos num diálogo de trocas de interesse, pois em seu primeiro momento, o carnaval está relacionado às condições de dominação patronal, que controla não somente a vida fabril, mas a vida cotidiana da vila operária e de seus moradores; enquanto que no segundo momento, existe um forte diálogo com a necessidade dúbia de reviver e/ou libertar-se das antigas relações de trabalho e de vivência.

Entretanto, o “sentido” tanto do Ferruge e como do Boi, só podem ser entendidos no “sentido imaginado e subjetivo dos sujeitos da ação” (WEBER, 2001, p. 400), ou seja, a sua complexidade está no fato de ele representar a necessidade de as pessoas dar sentido e significação inconscientemente a estes rituais e não a outros, por exemplo. Este sentido é o que pode instrumentalizar nossa tentativa de interpretação deste elemento simbólico posto nas relações sociais correspondentes.

Todavia, o fato de no Ferruge as pessoas aceitarem pacificamente sujarem a si próprio e a seus colegas, rasgarem a roupa e sujarem as casas de seu vizinho, representa uma relação de intimidade e de companheirismo não mais possível na atualidade, onde o carnaval “limpo” cria uma atmosfera de “cada um em seu lugar”, apesar de estarem todos num lugar só. O Boi pode ser reflexo de uma época de intensificação dos individualismos, onde brinca-se somente para ter seu divertimento pessoal e não mais o divertimento do coletivo, onde a inversão parece ter um sentido não tão vivo em comparação às antiga relações.

Portanto, são diversas as possibilidades de adentramos no estudo destas representações momentâneas desta comunidade e este trabalho teve apenas o intuito de colaborar com uma análise comparativa aberta a críticas e comentários, a fim de aprofundar as possíveis decifrações de códigos criados por este povo, que manteve por uma forte identidade por um relativamente longo período e que tem à deriva suas possibilidades de incorporar ou permanecer com novos hábitos e auto estima social.



REFERÊNCIAS



ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6023: 2002 informação e documentação: referência: elaboração. Rio de Janeiro: ABNT, 2002. 24p.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: 2002 informação e documentação: citações em documentos: apresentação. Rio de janeiro: ABNT, 2002.7p

ALMEIDA, Luiz Sávio de. Notas sobre poder, operários e comunistas em Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2006. 157p.

ALMEIDA, Jaime de. Uma teoria da festa: o carnaval brasileiro. In: _____. ALMEIDA, Luiz Sávio de (Org.); CABRAL, Otávio; Araújo, Zezito. O negro e o construção do carnaval no Nordeste. Maceió: EDUFAL, 2003. P. 13-22.

BAKHTIN, Mikhail. Introdução. In: ____. A cultura popular na idade média e no renascimento: contexto de François Rabelais. São Paulo; Brasília: Hucitec;EdUnb, 1993. p. 1-50.

BAUMAN, Zygmunt. Prefácio. In: ____. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 7-22.

BONNEVITZ, Patrice. Primeiras lições sobre a sociologia de P. Bourdieu. Petrópolis: Vozes, 2003. 149 p.

BRANDÃO, Théo. O reisado alagoano. Maceió: EDUFAL, 2007. 230 p.

BURKE, Peter. O mundo do carnaval. In: ____. Cultura popular na idade moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1993. p. 202-228.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. 350 p.

DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo: Martin Claret, 2008. 155 p.

______. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 483 p.

FARIAS, Ivo dos Santos. Fernão Velho: memórias de uma cultura operária. 2008. 50f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em História). Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2008.

LESSA, Golbery. Para uma história da indústria têxtil alagoana. No íris alagoense, Maceió, dez. 2008. Disponível em: http://novoirisalagoense.blogspot.com. Acessado em: 15 dez. 2009.

LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na “cidade das chaminés”. São Paulo: Editora Marco Zero, 1988. 623 p.

MARX, Karl; ENGELS, Friederich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Grijalbo, 1977. 138 p.

MARX, Karl; ENGELS, Friederich. O manifesto do partido comunista. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. 65 p.

MEMÓRIA da vida e do trabalho. Direção e produção de Celso Brandão. Argumento e texto: José Sérgio Leite Lopes e Rosilene Alvim. Roteiro: Regina Coeli. Maceió: Estrela do Norte, 1986. 1 DVD (20 min). son., color.

WEBER, Max. Conceitos sociológicos fundamentais. In: ____. Metodologia das ciências sociais (parte 2). 3. ed. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2001. p. 399-429.