8.12.09

A CONTINUIDADE DA ABORDAGEM POSITIVISTA ACERCA DO FOLKLORE NA OBRA DE THEO BRANDÃO



Foto: Revolução de 1930 em Alagoas (acervo APA)




Por Gabriel Magalhães Beltrão (sociólogo)

O seguinte trabalho a respeito do intelectual folclorista Theo Brandão segue a linha do projeto de iniciação científica que anseia trazer à tona os precursores das ciências sociais no Estado de Alagoas. A partir deste mote é que se torna de fundamental importância a análise do referido autor, pois este foi um dos que iniciaram a institucionalização das Ciências Sociais em Alagoas a partir do antigo curso de Estudos Sociais – predecessor direto do curso de ciências sociais da Universidade Federal de Alagoas - onde ministrava a disciplina de antropologia física. Apesar de possuir um caráter também historiográfico, não é este o foco central da nossa empreitada: buscamos primordialmente realizar uma análise sociológica da intelligentsia a partir das orientações dadas por Michel Löwy em A Evolução Política de Lukács: por uma sociologia dos intelectuais revolucionários; ou seja, buscaremos explicitar quais os vínculos do pensamento de Theo Brandão com a sua realidade sócio-histórica, tomando a sua abordagem a respeito do folclore como o fulcro para desvendar tais relacionamentos contidos no seu pensamento que aparece supostamente indepedente a uma leitura apressada.

1 – O folclore numa abordagem positivista

Os pensamentos científicos positivista e evolucionista de Augusto Comte e Spencer, respectivamente, apregoam a idéia de que a sociedade burguesa se configura enquanto o ápice da evolução humana, estágio evolutivo marcado pela razão em contraposição ao saber tradicional. Assim, a modernidade é identificada ao saber racional característico da ciência que teria suplantado as formas empíricas de conhecimento identificadas ao arcaico, ao tradicionalismo, ao pré-moderno. Instaura-se com esses autores uma abordagem dicotômica das sociedades ocidentais: apesar de terem atingindo o momento último da evolução estas sociedades ainda trazem consigo reminiscências arcaicas que estariam, inelutavelmente, em vias de desaparecimento. Haveria uma natureza distinta entre as formas de ser, de existir e de pensar associadas às camadas populares, a todo aquele conjunto formado por proletários e camponeses que estão desprovidos de uma cultura moderna[1], racional, e que, ao contrário, se caracterizam pelas relações pessoais, pelo saber empírico, pela cultura oral, pela produção própria de utensílios como os brinquedos, etc. A burguesia, no entanto, era a representação clara da modernidade e do progresso à medida que suas relações são impessoais – intermediadas pelo dinheiro – , sua cultura é culta (erudita) marcada pela escrita e pela intencionalidade autoral.
Surge dessa abordagem o espaço para o surgimento de uma nova ciência típica da modernidade: aquela que tem por objeto específico o saber popular. Havia nas sociedades civilizadas uma cultura arcaica que sobrevivia no interior da modernidade apesar de nada ter a ver com ela; justamente esse saber popular que se encontra a margem do civilizado é que seria o objeto sui generis responsável pela emersão da ciência da saber popular – o folclore. Sobre essa pretensão diz Florestan Fernandes em um dos seus muitos escritos sobre o folclore:

Em síntese, o objeto do folclore seria – pode-se dizer assim, dentro desse esquema – o estudo dos elementos culturais praticamente ultrapassados: as “sobrevivências”. Ou seja, como o definiu Sébillot: “a ciência do saber popular”, partindo da significação do próprio vocábulo (folk = povo; lore = saber), tal como propusera o seu criador, William Thoms. Essa é a pista seguida por Saintyves na definição que apresentou mais tarde e que logo se tornou clássica, principalmente entre os folcloristas latinos: “o folclore é a ciência da cultura tradicional dos meios populares dos países civilizados”. [2] (Pg. 41)


Ao folclore enquanto ciência cabe a tarefa de descrever e sistematizar tudo que estiver relacionado à cultura popular o que gera uma distinção da atividade do folclorista em relação às demais ciências sociais. Por partir do pressuposto de que o folclore é uma mera reminiscência, o folclorista não busca realizar explicações causais a respeito do conteúdo dos fatos folclóricos, ou seja, não há qualquer pretensão de desvelar o relacionamento dos fatos folclóricos com a totalidade social na qual eles estão inseridos. Essa abordagem meramente descritiva faz bastante sentido à medida que o pressuposto teórico é proveniente do positivismo que encara o folclore como um anacronismo em vias de desaparecimento. Algo que é anacrônico é retrogrado e estranho ao moderno e, por sua vez, não possui grandes significados sócio-culturais já que não se relaciona com a modernidade em voga. Os antropólogos e sociólogos não comungam desta idéia e vêem o folclore inserido “numa ordem de fenômenos mais ampla – a cultura – e podem ser estudados como aspectos particulares da cultura de uma sociedade” (Idem pg. 48); qualquer que seja a fundamentação teórica do sociólogo ou do antropólogo o folclore sempre será encarado como um conjunto de manifestações culturais específicas, mas que está em conexão com a sociedade como um todo não havendo essa dicotomia típica dos folcloristas. Finalizando, diz F. Fernandes sobre a maneira distinta como a sociologia e a antropologia enxergam os fatos folclóricos:

Os fatos folclóricos não passam de um aspecto da cultura totalmente considerada e são fatos que se referem a modalidades diferentes dessa cultura e, por conseguinte, só podem ser explicados a partir dessa mesma cultura. (Idem, pg. 49)

1.1 – A continuidade de Theo Brandão

Dito essas considerações a respeito da concepção positivista clássica do folclore, buscaremos agora demonstrar a vinculação de Théo Brandão com a mesma. Segundo Florestan Fernandes, a busca incessante inicial por consolidar o folclore enquanto uma ciência particular mediante as discussões teóricas foi suplantada por uma nova geração menos afeita a esse nível de discussão e mais interessada em realizar trabalhos descritivos. Dessa forma, a tradição folclorista da América Latina se interessava quase que exclusivamente pelo trabalho de campo, pela descrição das manifestações populares e pela busca da origem de tais manifestações, eximindo-se totalmente de explicações causais destes fatos folclóricos. Tratava-se de estudos “biográficos” de determinados elementos folclóricos, como gosta de dizer F. Fernandes.
A obra folclorista do médico de formação e alagoano Théo Brandão se insere na concepção teórica positivista e neste contexto prático característico da América Latina por vários fatores que tentaremos enumerar a partir de agora. Em palestras ao Rotary Club em 1949 Théo Brandão assim define o folclore:

Folclore, segundo o mais recente conceito enunciado por André Varagnac é civilização tradicional, isto é, engloba todos os elementos culturais não elaborados intelectualmente, tudo aquilo que o homem, de qualquer nível social aprendeu fora dos livros, da escola e dos diversos meios de difusão cultural: o fonógrafo, o cinema ou o rádio.[3]


O folclore é claramente definido como civilização tradicional, ou seja, como aquela parcela da cultura que está distanciada da modernidade, que é externa e estranha aos mecanismos modernos da cultura, tal como a escola, o cinema e o rádio – locus do saber racional. O tradicional é definido como os elementos culturais não elaborados intelectualmente à medida que possui um caráter diretamente empírico, desprovido de sistematização conceitual, e é propagado mediante a oralidade e não através da escrita. O homem de qualquer nível social pode está inscrito nesta parcela tradicional, arcaica, sendo este reconhecimento de Théo Brandão bem característico da nossa formação capitalista hiper atrasada onde a inexistência de ruptura histórica ocasiona sempre processos marcados pela sobrepujança da continuidade sobre as descontinuidades: mesmo as nossas elites agro-exportadora e mercantil – portadoras por excelência da modernidade – trazem consigo marcas inelutáveis do tradicional. Apesar dessa constatação de que o arcaico não é exclusivo ao povo no estado de Alagoas, em uma passagem da sua monografia Reisado Alagoano Théo Brandão diz implicitamente que a modernidade é uma exclusividade das nossas elites. Diz se referindo ao reisado:

E quando em vilas ou cidades não encontram casa que os aceitem para dançar (o que é muito mais comum hoje do que antigamente, quando a aristocracia rural dos bangüês e a classe média das cidades do interior a ela ligada ainda não possuíam, nem rádios, nem vitrolas, nem cinemas e era a grande apreciadora das folganças populares) realizam os folguedos nos mercados públicos. Ou então, se algum chefe político ou pessoa influente da localidade patrocina a exibição, ela se realiza em armazéns, pátios cimentados, galpões e não mais nas salas de visita ou de jantar como acontecia nos tempos antigos. (pg.26)


O tom nostálgico da passagem não encobre o fato de que nela podemos identificar a associação da modernidade à aristocracia rural do estado, aquela responsável pela adoção de valores culturais modernos que deixam para trás o tradicional reisado. Ao homem do povo resta a continuidade das suas manifestações culturais tradicionais, a partir de agora não mais valoradas pelos “senhores do tempo” que trazem para o mesmo espaço geográfico a modernidade dele (do povo) excluída. O arcaico pode até respingar na elite agro-mercantil alagoana, no entanto, a modernidade é vista como uma exclusividade desta, tornando-se o povo reprodutor por excelência da cultura tradicional; a este a modernidade é estranha assim como o é a sua processualidade.
Seguindo a tônica positivista, ao homem do povo é excluída a sua participação no moderno e sua cultura passa a ser etiquetada como um anacronismo exótico que deve ser descrito e sistematizado por uma área específica do saber – o folclore como ciência do saber popular. Temos que ressaltar aqui, entretanto, uma tênue distinção de suma importância. Nas sociedades que atingiram o capitalismo pela via clássica – Inglaterra, França e Estados Unidos –, evidenciou-se uma transformação abrupta em toda a sociedade onde os elementos pré-capitalistas foram rapidamente substituídos por um conjunto de práticas e valores essencialmente distintos; neste contexto, há até um certo sentido em se dizer que os aspectos tradicionais são anacrônicos, meras reminiscências, justamente pelo fato de que tais práticas e valores serão em um curto prazo suplantados por aqueles plenamente capitalistas. Este não é o caso da formação brasileira, especificamente da sub-região representada por Alagoas. Não seria nem um pouco plausível a Théo Brandão afirmar explicitamente – tal como o fazia os propagadores da concepção positivista clássica - que a cultura popular é um anacronismo existente na sociedade alagoana, afinal, longe de está em vias de dissolução, ela faz parte intrinsecamente à nossa modernidade capitalista. A nossa formação capitalista traz consigo elementos eminentemente pré-capitalistas que fazem parte do próprio desenvolvimento do capital local: não se trata de uma relação dicotômica, mas, ao contrário, de uma unidade dialética onde o velho se sintetiza ao novo como forma de potencializá-lo – no caso potencializar a exploração capitalista. Diante disso, Théo Brandão absorve a perspectiva teórica que taxa a cultura popular como isenta da modernidade e numa relação de externalidade em relação a ela, mas com uma sutil diferença em relação ao positivismo clássico, visto que o arcaico aqui não está em vias de dissolução e por isso o sentido mais puro do ser alagoano deve residir precisamente neste tradicionalismo. Enquanto numa França revolucionária o referencial identitário reside nos valores tipicamente modernos, para Théo Brandão a identidade alagoana se encontra nas suas tradições culturais mais apartadas da modernidade – especificamente no reisado e no guerreiro.
Poderíamos dizer, então, que há um positivismo velado na abordagem de Théo Brandão sendo este justificado pelas especificidades sócio-históricas da nossa formação capitalista. Uma reprodução em mesmo tom desta abordagem de origem francesa na peculiaridade da nossa formação não possibilitaria que o nosso autor lograsse êxito na sua empreitada de formular uma interpretação da identidade alagoana que se tornasse hegemônica. Afinal, o seu objetivo foi tão bem realizado que a bandeira de Alagoas foi substituída pela sua proposta que está diretamente voltada à exaltação das tradições culturais alagoanas. A bandeira do estado estaria representando a “essência” do povo alagoano, aquilo que é mais próprio à nossa identidade, mesmo que esta resida numa dimensão da sociedade que é alijada da modernidade; talvez seja justamente por este distanciamento quase que absoluto existente entre a cultura popular e a modernidade que as manifestações tradicionais sejam entronadas como a nossa essência última. Por este fato é que se evidencia uma certa repulsa quanto ao movimento interno de transformação existente no folclore; diz Théo:

Atualmente, a preocupação com os improvisos de “peças” e com as intermináveis “embaixadas”, do mesmo modo que a lei do menor esforço que não se coaduna com o tirocínio e a virtuosidade necessários à aquisição da antiga técnica do bailado, levam ao abandono dos “passos” difíceis e por isto mais belos, substituídos por danças mais simples que requerem muito menor esforço e por uma independência de movimentos, uma descoordenação do todo que, embora não deixe de ter seus atrativos, não se pode comparar com a uniformidade e a precisa marcação dos antigos reisados. (pg.76)


O hiato entre o popular e o moderno não é absoluto e, por isso, evidenciam-se as transformações no interior do folclore, mesmo que a contragosto do folclorista. Apesar dessas modificações, ao folclorista não cabe a tarefa de entendê-las – explicá-las - , mas, tão-somente, descrevê-las e, principalmente, remeter-se às origens destas manifestações para daí apreender a sua essencialidade que não se perde com esses movimentos pontuais, que apenas aparentemente são degeneradores. Desta essencialidade é que provém a nossa identidade que nos distingue dos demais povos da federação.
Como já havia dito anteriormente, o caráter dicotômico da perspectiva positivista a respeito do folclore conduz à defesa do folclore como ciência do saber popular e, por se tratar de um anacronismo, tal ciência estaria isenta do caráter explicativo causal existente nas demais; afinal, pensar o folclore é pensar uma cultura que, por mais que defina a nossa identidade, não tem vínculos com a modernidade em voga, não havendo a necessidade de se buscar explicá-la à luz da sociedade tomada como um todo. Théo Brandão faz uma crítica às abordagens teóricas que abandonam a busca pelas origens do folclore em prol da compreensão da sua função no contexto cultural; diz ele no artigo Influencias Africanas no Folclore Brasileiro:

Demais, tem contribuído fortemente para que se tornem mais árduas essas dificuldades, a ausência, nos últimos anos, de interesse, valoração e prestígio para os estudos genéticos no folclore, e conseqüente abandono da pesquisa das influencias e fontes de nossas tradições populares. Dominam entre folcloristas as teses funcionalistas e aculturacionistas segundo as quais é ociosa e contraproducente o estudo das fontes e origem dos nossos costumes e do nosso folclore, o seu estudo cientifico interessa-se por sua função no contexto cultural ou pelas modificações por eles sofridas em nossa sociedade e cultura, em face da interação com outros fatos e costumes autóctones e alienígenas.

Théo Brandão quer um estudo que se atenha à busca pelos elementos genéticos do folclore, buscando trazer à tona as influências múltiplas que contribuíram à formação do folclore alagoano; em outras palavras, busca-se a “essência” das nossas tradições culturais que formam a nossa identidade alagoana. Por mais que o folclore sofra um processo de transformação – seja por fatores exógenos ou endógenos à sociedade alagoana – isso não é o que deve interessar ao folclorista, cabendo a este trazer à tona a pureza do tradicional que não se perde nas transformações modernizadoras. Não cabe também ao folclorista buscar desvendar qual a função do folclore no interior da sociedade, afinal este objetivo nunca foi – desde as abordagens clássicas acerca do folclore – próprio ao folclore enquanto ciência; “é preciso procurar as origens, antes que as causas”[4], num claro objetivo “biográfico” dos fenômenos folclóricos. Pode-se dizer que a essência alagoana contida no folclore possui um caráter metafísico, visto que esta passa incólume por todas as transformações sofridas pelo próprio folclore enquanto complexo social partícipe da totalidade social; ou seja, Théo Brandão opera uma reificação da identidade alagoana ao atribuí-la uma dimensão essencial metafísica.[5]
Essa carência explicativa na obra de Théo Brandão – advinda, segundo a minha hipótese, da sua filiação teórica com a abordagem positivista a respeito do folclore – foi notada por Florestan Fernandes que teceu os seguintes comentários a respeito da sua premiada obra O Reisado Alagoano:

A monografia do sr. Théo Brandão sobre o “O Reisado Alagoano”, contemplada com o primeiro prêmio, distingue-se pela documentação extraordinariamente rica, quase toda inédita e exposta de maneira minuciosa, clara e objetiva. O autor teve o cuidado de indicar o local e a data em que foram colhidos os textos, as melodias e outros dados. Interessantes e valiosas são as informações sobre as mudanças sofridas pelo “reisado” no decorrer do período a que se refere a pesquisa do autor. Pena é que o sr. Théo Brandão não tenha procurado elaborar cientificamente o excelente material que apresenta. A análise etnográfica não é completa, mas em muitas partes pelo menos satisfatória, ao passo que a discussão sociológica apenas se esboça em algumas passagens. Não há nenhuma conclusão geral do estudo. [6]


A obra é reconhecida pela sua capacidade de documentar o reisado alagoano, demonstrando uma série de modificações existente entre o reisado daquele período em relação ao reisado praticado nos anos 20 e 30 – épocas em que o autor era neto de um senhor de engenho e adorava quando o seu avô aceitava que o reisado fosse realizado no interior da Casa Grande. Apesar desse reconhecimento, Florestan deixa claro as limitações do autor que não realiza uma elaboração científica do seu material, ou seja, não tem qualquer pretensão em compreender o sentido das manifestações culturais tradicionais para a sociedade alagoana, muito menos buscar explicações para as transformações evidenciadas no interior destas.
Feito essas considerações que buscam provar a hipótese de que Théo Brandão dá continuidade à abordagem positivista a respeito do folclore, mesmo que com uma peculiaridade decorrente da nossa formação social específica, passaremos agora a uma nova etapa do relatório de caráter mais propriamente teórica. Nesta, anseia-se refletir a respeito do que se trata a cultura, bem como sobre o papel dos intelectuais na formação de uma identidade regional; daremos ênfase ao reconhecimento de que a identidade é um espaço de conflito e que, conseqüentemente, não há interpretações acerca dela que não tenha uma determinada vinculação de classe. Em todo esse percurso terá a figura de Théo Brandão um papel central já que é dele que estamos tratando.

2 – Cultura, formação da identidade regional e o papel dos intelectuais

Quando se pensa a cultura normalmente se faz uma associação com os fenômenos subjetivos, com a dimensão das crenças e valores que diferenciam um povo de uma área geográfica específica dos demais povos, de maneira que estas representações imaginárias se consubstanciem em práticas sociais distintas. Dessa forma, toda e qualquer sociedade seria necessariamente cultura haja visto que todas possuem um conjunto de significados, signos e condutas peculiares que fundamentam a sua identidade, pressuposto indispensável ao sentimento de pertença e da alteridade. Certamente todo povo possui cultura, afinal é uma barbaridade etnocentrista se distinguir entre os povos de cultura e aqueles isento de cultura. Todavia, a cultura que é própria ao ser social é entendida aqui como a complexa articulação existente entre subjetividade e objetividade, nunca numa abordagem que dissolva a objetividade na subjetividade. Isso significa dizer que as culturas dos povos não podem estar desconectadas das suas relações sociais objetivas, mas, antes, se configuram precisamente enquanto a complexa articulação existente entre as práticas sociais primárias (o trabalho) e aquelas práticas sociais de caráter intersubjetivo (arte, folclore, direito, culinária, senso comum, etc.). É neste sentido que o sociólogo alagoano Golbery Lessa propõe a substituição do conceito de cultura – que se restringe à subjetividade – pelo conceito marxiano de práxis, pois neste caso busca-se elevar à consciência as múltiplas mediações que unificam os pólos distintos da subjetividade e da objetividade pondo um termo às abordagens culturalistas. Sobre essa perspectiva da cultura citemos Lukács:

(…) tudo que a cultura humana criou até hoje nasceu, não de misteriosas motivações internas espirituais (ou coisa que o valha), mas do fato de que, desde o começo, os homens se esforçaram por resolver questões emergentes da existência social. É à série de respostas formuladas para tais questões que damos o nome de cultura humana.[7]


A cultura humana deve ser encarada como um conjunto de respostas que os homens já deram às demandas surgidas para a sua existência social, respostas estas que são dadas de acordo com as possibilidades historicamente existentes. Assim, o reisado alagoano descrito por Théo Brandão se configura enquanto uma resposta específica dada pelos sujeitos para expressarem em termos estéticos a eles cabíveis as suas realidades sócio-históricas peculiares; torna-se, desta forma, uma manifestação historicamente fincada e que traz consigo todas as marcas características da formação social específica que fundamentou o seu engendramento pelos trabalhadores dos engenhos de cana de açúcar da província de Alagoas. Precisamente neste sentido diz Golbery Lessa no artigo Outra Alagoanidade:

A alagoanidade não é só um fenômeno subjetivo, não é apenas um estado de consciência ou um jeito próprio de cada alagoano expressar sua individualidade, no sentido de possuir essas ou aquelas atitudes mentais. A alagoanidade é o conjunto articulado de sistemas que estruturam a formação social alagoana e possui singularidades em relação aos conjuntos análogos de outras formações sociais.[8]

A formação social alagoana possui peculiaridades que a distingue de outras formações, mesmo aquelas mais similares. Há, portanto, singularidades que distinguem, por exemplo, a nossa economia mesmo que seja em relação àquela existente em Pernambuco, que é bastante similar à nossa em função do nosso passado colonial; destas peculiaridades relacionam-se uma série de outras características que são próprias ao alagoano em outros complexos sociais, sem que com isso estejamos desconsiderando a autonomia relativa destes. Nas palavras de Golbery Lessa: “É fértil procurar no sistema econômico singularidades que são pólos de reprodução de singularidades de outros complexos da práxis alagoana. Isso não significa desprezar ou diminuir a importância da lógica interna de cada complexo social específico (…)”. Por tudo isso, nossa abordagem acerca do folclore pode ser definida como diametralmente oposta àquela proposta por Théo Brandão: estamos longe de considerar o folclore como uma manifestação cultural que não tenha nexos causais indissolúveis com a sua realidade sócio-histórica que fundamentou a sua emergência; nem muito menos achamos que tal manifestação cultural está isenta de movimentos internos que expressam as transformações da formação social alagoana. Por ser partícipe de uma totalidade social complexa, o folclore não pode em hipótese alguma ser considerado um anacronismo histórico que conviva à margem - em paralelo – da sociedade moderna; por mais que o seu surgimento nos remeta ao passado colonial, ele se transforma em consonância com o lento processo de transformação da sociedade alagoana, passando a conviver com o moderno não numa posição de externalidade dicotômica, mas numa relação de síntese dialética que unifica o que aparentemente se repele.[9]
É de fundamental importância que toda formação social busque promover uma consciência de si mesma, no caso de Alagoas, que haja uma interpretação acerca do ser alagoano que seja universalizada a todos aqueles que habitam este espaço geográfico específico. A interpretação a respeito desta realidade social peculiar não é um espaço harmônico como às vezes se propõe, mas, ao contrário, toda e qualquer interpretação que anseie delinear uma identidade cultural traz consigo as marcas do seu ponto de vista de classe. Além disso, propor uma interpretação sobre a identidade de um povo significa não somente delimitar o que ele é, visto que a partir desta delimitação se define em larga escala o que ele deve ser. Ou seja, qualquer interpretação a respeito do que seja o ser social alagoano não é ingênua, pois está necessariamente vinculada a uma determinada posição no conflito social preponderante, bem como prescreve – mesmo que de forma inconsciente – como deve se dar o devir desta mesma formação social.[10] Mais a frente nos debruçaremos sobre Théo Brandão para exemplificar esta relação entre identidade cultural e conflito.
Dirceu Lindoso nos mostra que desde a época em que Alagoas ainda era uma comarca da capitania de Pernambuco já havia uma peculiaridade desta região em relação ao norte da capitania. Diz ele:

Há indícios de que no século XVIII o espaço alagoano se apresentava como dotado de um modo diferencial de falar-se o português de origem minhota ou além-tejana; como um aglomerado populacional onde se iniciavam certas formas de distinções de conduta social, de aglutinamento dos elementos culturais; de definição política da organização social em aldeias indígenas, povoações, vilas, freguesias, comarcas; de um espaço físico configurado e de referências topográficas nítidas.[11]


Ressalta o autor que já no século XVIII essa distinção já se formalizava ao nível da escrita através dos relatórios dos governos de Pernambuco que sempre delineavam a peculiaridade da região sul da capitania. Durante todo o século XVIII há esse processo de gestação da imagem peculiar a respeito do território, da economia, da política e da sociedade da comarca de Alagoas que vai atingir o seu ápice em 1817, data em que o ato régio eleva a comarca ao posto de capitania. A partir do momento em que cessa a sujeição política em relação a Pernambuco é que se dar a “criação de um espaço cultural alagoano, que constitui a materialização da imagem diferencial que se vinha formando numa antecedência de mais de dois século”[12]. Continua Lindoso:
A formação da imagem diferencial das Alagoas, embora constem suas raízes na época colonial, se materializa no Reino Unido, quando se estabelece por decreto régio, a capitania das Alagoas em 1817. A destinação das Alagoas como entidade política de autonomia relativa no corpo do Brasil Reino se prefigura na imagem diferencial que se produz na escrita do século XVIII. (…) Só a partir de 1817 as Alagoas são uma imagem política homogênea e autônoma, que se passa a definir na difícil história social e política do futuro Império.[13]


A partir deste momento é que se inicia o processo de maturação da formação da identidade alagoana, sendo cunhada a partir da ótica dos senhores de engenho e dos comerciantes urbanos. Isso significa dizer que a interpretação a respeito do que seja o ser alagoano durante o séc. XIX é realizada exclusivamente – ao nível da escrita e dotada de uma sistematização mínima - por estas camadas sociais hegemônicas econômica e politicamente; “A imagem diferencial se materializa, e se consolida como fato de poder”, sintetiza Lindoso.
Antes de prosseguirmos, é fundamental trazer as considerações de Golbery Lessa a respeito desta necessidade de se construir identidades nacionais ou regionais por parte das classes dominantes. Este autor traz no seu artigo acima citado as contribuições do austro-marxista Otto Bauer sobre as construções das identidades nacionais; segundo a sua hipótese, percorrem-se três etapas para se constituir esta identidade nacional ou regional. Sinteticamente, são as seguintes: 1) o momento inicial de erudição onde uma elite intelectual se debruça sobre o passado histórico e cultural de um povo para daí propor uma interpretação sobre esta peculiaridade; 2) no momento intermediário, um conjunto de agitadores culturais e políticos buscam propagar aquela interpretação da identidade, buscando relacioná-la às instituições políticas para que também se tornem propagadoras da mesma; 3) por último, aquela interpretação da identidade nacional ou regional é assimilada pelo conjunto da população de um dado espaço geográfico, tornando-se partícipe do senso comum o que contribui para a formação da unidade nacional e a soberania do Estado-nação.[14]
Podemos dizer que às classes dominantes de Alagoas do século XIX também era de suma importância se cunhar uma dada identidade sobre o ser alagoano, devendo esta ser universalizada com o objetivo de reiterar a hegemonia econômica e política constituída. Tal identidade que anseia preservar as relações de classe da província busca apagar as ações contra-hegemônicas de segmentos da classe explorada, tal como a Guerra dos Cabanos de 1832 que é abstraída da identidade do povo alagoano. O que se observou foi uma imputação criminal a esta revolta que não estava em conformidade com a natureza do alagoano, sendo proveniente de seres desprovidos do espírito alagoano. Estavam em consonância com o espírito alagoano aqueles sujeitos que não questionassem a sociedade escravista, baseada na produção agro-exportadora de cana de açúcar, o Estado liberal-escravista e seus senhores de engenhos. É importante salientar que o Instituto Histórico Alagoano foi um dos primeiros do país datando de 1862, o que demonstra que a elite aristocrático-mercantil do estado desde cedo teve a preocupação de elaborar a sua interpretação da história da província. Afora isso, Dirceu Lindoso demonstra minuciosamente que a própria interpretação da província vai sendo modificada, modernizada relativamente, à medida que o capital mercantil vai se sobrepujando ao capital agrário-exportador; passa-se a identificar nos escritos a necessidade de modernização dos engenhos mediante a adoção das modernas usinas, a necessidade de políticas que incentivassem a indústria têxtil do estado, a crítica à estrutura burocrático-autoritária do Império em favor do liberalismo econômico, entre outros aspectos que demonstram que no interior da própria elite alagoana havia divergências relativas ao futuro da província.
Ao início do século XX Alagoas já havia sentido internamente um processo considerável de modernização capitalista, seja através da intensificação do comércio - principalmente em Maceió - ou do surgimento das primeiras indústrias têxteis que intensificavam ainda mais a vida urbana – sendo Fernão Velho e Rio Largo os principais focos. Aliando o esse movimento interno é de suma importância considerarmos processos regionais, nacionais e internacionais que ocorriam concomitantemente e que influenciam consideravelmente a realidade local e os sujeitos históricos aqui existentes. Todo esse cenário sócio-econômico do estado se irradiava sobre diversos complexos sociais: na política, a sobrepujança do capital mercantil intensificou o processo de urbanização e de modernização da produção de cana-de-açúcar através das substituições dos bangüês, mesmo que a contragosto dos senhores de engenhos – este processo de modernização da política se concretizaria em 1912 com a queda da oligarquia Malta que é substituída por uma outra oligarquia de caráter mais progressista, modernizante; na cultura, à medida que novos sujeitos emergiam neste processo – proletariado urbano, setores médios ligados à burocracia estatal republicana, entre outros – a formulação da identidade alagoana foi sendo transformada, modernizada, seja por parte da perspectiva conservadora, republicano-democrática ou mesmo socialista. Justamente por isso surgem figuras como Otávio Brandão com seus escritos anarquistas, Graciliano Ramos na literatura, a Escola de Viçosa com seus estudos folclóricos, Arthur Ramos[15] e os seus estudos sobre os índios, negros e mulheres - que rompem com a abordagem tradicionalmente racista da interpretação da classe dominante alagoana sobre a alagoanidade - , além da modernização na historiografia com Craveiro Costa e Moreno Brandão. Esse processo de transformação da realidade social e do discurso sobre a mesma prosseguiu até 1930 quando se deu a vitória do tenentismo, responsável pela potencialização deste processo modernizante dentro das limitadas capacidades do capitalismo brasileiro.
As transformações vivenciadas nas relações de produção se configuram enquanto o momento predominante que exigiram dos sujeitos históricos respostas imprescindíveis para a reprodução social; a interpretação da identidade é certamente uma resposta a esta necessidade oriunda do trabalho e que passa a compor a totalidade social. As propostas identitárias para o ser alagoano se tornam mais numerosas a partir do século XX em função do já referido surgimento de novos sujeitos e do espaço extremamente débil, mas existente, da democracia nos perímetros urbanos. Como havia dito anteriormente, cada uma dessas interpretações não se limitam a representar sobre o que é o ser alagoano, mas trazem consigo uma necessária projeção acerca do que deve ser este ser alagoano.
Todos esses comentários historiográficos são imprescindíveis para situarmos Théo Brandão historicamente. Não podemos defini-lo como um mero folclorista, por mais que fosse assim que ele se identificasse, mas ele “foi um dos contemporâneos mais ativos na construção de uma consciência da alagoanidade”.[16] Atuou ativamente na elaboração de uma identidade alagoana que representasse uma modernização da interpretação aristocrático-burguesa até então em voga, ou seja, foi um erudito capaz de perceber o movimento de seu tempo e a partir daí realizar esta atualização indispensável para que a identidade alagoana propagada pela elite local se tornasse plausível. O homem é um ser que dá respostas e estas são dadas a partir do momento em que as necessidades surgem na realidade social; no caso de Théo Brandão, as transformações existentes na realidade alagoana – assim como os discursos já existentes sobre o humano a nível mundial – o impeliram a dá respostas palatáveis sobre o ser alagoano do ponto de vista de sua classe de origem[17]. Uma série de outros alagoanos também realizou esta empreitada em outras dimensões (do ponto de vista da elite local), como Moreno Brandão na historiografia, Arthur Ramos na antropologia, que trazia à tona uma série de interpretações até então obscurecidas pela abordagem tradicional da classe dominante e Manuel Diegues Jr. que faz uma interpretação modernizada dos bangüês alagoanos. Gilberto Freyre se configura enquanto um marco divisor de águas que influenciou toda uma geração subseqüente: não havia mais como tematizar a identidade excluindo o negro e o índio que se tornam partícipes indispensáveis para sua efetivação; entretanto, estes são trazidos para o discurso dominante mediante uma atenuação da trágica relação efetivamente existente, bem como por uma bestialização destes sujeitos historicamente dominados.
Théo Brandão enquanto intelectual orgânico[18]da elite agro-mercantil alagoana não pode trazer as camadas populares para o debate político, não pode equipará-las à elite dentro de um projeto transformador de caráter popular-democrático tal como ocorreu na França revolucionária. Lá, os trabalhadores e os camponeses foram chamados pela burguesia para agirem enquanto sujeitos históricos e porem a baixo o velho regime, instaurando a modernidade capitalista alicerçada nos ideais de igualdade e liberdade. O distanciamento da burguesia em relação às camadas populares já havia sido evidente na Alemanha e na Itália, onde a debilidade da burguesia impedia que ela se contrapusesse revolucionariamente à velha aristocracia feudal, além de que a incapacidade do capitalismo em efetivar os ideais humanistas alardeados durante a revolução francesa abrira espaço para projetos societais que questionavam a ordem do capital, causando temor por parte das burguesias nacionais ainda ávidas por poder político. A intitulada via prussiana, por Lênin, ou a revolução passiva ou transição pelo alto, por Gramsci, significa precisamente esta transição para o capitalismo em que as massas são apartadas do processo histórico, justamente porque a burguesia quer vê-las distante do poder como forma de impedir que elas ponham as suas demandas a serem efetivadas; instaura-se nesses países instituições muito mais autoritárias, chauvinista, um capitalismo onde a intervenção estatal é uma constante à medida que eles estão retardados no processo de acumulação de capital, em suma, não há a emergência de uma democracia liberal burguesa. Todos esses problemas decorrentes da via prussiana ao capitalismo existem na transição ao capitalismo pela via colonial, mas tais problemas assumem nestes países um caráter muito mais nocivo, como é o caso do Brasil. Evidenciamos um processo muito mais acentuado de apartamento das camadas populares das tomadas de decisão, o que fica claro nos processos de independência e de proclamação da República: o distanciamento destes para com a massa é gritante, quase que absoluto. Há também um fortalecimento ainda maior do Estado sobre a sociedade civil com o objetivo frustrado de realizar a modernização capitalista no país a partir da acumulação do capital nacional; entretanto, essa transição hiper tardia ao capitalismo impede a acumulação do capital nacional que se torna sócio minoritário do capital monopolista dos países centrais; ao receio das camadas populares por parte da burguesia nacional fundamenta acordos desta com as oligarquias agrárias de maneira que os avanços progressistas do capitalismo sejam inexistentes ou limitados, fortalecendo o chauvinismo em detrimento da participação popular. Sobre essa transição diz Carlos Nelson Coutinho:

Neste tipo de transição, as camadas subalternas manifestam-se através de um “subversivismo esporádico e elementar” (a expressão é de Gramsci), ao passo que as classes dominantes reagem a esses embriões de um movimento que vem de baixo precisamente com manobras pelo alto, que implicam um acordo e uma conciliação entre os segmentos “modernos” e os segmentos “arcaicos” dessas classes. Não se tratam, essas transições, de meras contra-revoluções, mas são precisamente aquilo que Gramsci chamou de “revoluções-restaurações”, ou “revoluções passivas”, que, ao mesmo tempo em que se introduzem novidades, conservam muitos elementos da velha ordem. A especificidade deste tipo de transição é precisamente esta: que o novo surge na história marcado por uma profunda conciliação com o velho, com o atraso.[19]


Essa panorâmica sobre as formações capitalistas é importante para compreendermos a forma positivista como Théo Brandão traz o povo para a interpretação da identidade alagoana. As transformações sociais exigem a atualização desta identidade cunhada pela elite agro-mercantil do estado de forma que Théo Brandão retire as camadas populares do ostracismo, emergindo-as no discurso dominante como sujeitos passivos, inertes e impossibilitados de fazer a sua própria história. Diz Golbery Lessa:

Primeiro: o homem do povo – que ele gosta de chamar o homem “folk” – não é visto nunca como o protagonista de sua própria história, ou de seu futuro, de seu devir. O homem folclórico é visto sempre por Theo Brandão como aquele homem que está apartado da modernidade, que não é e nem pode ser um cidadão, que não é um potencial revolucionário, que não pode ser um potencial protagonista de projetos políticos e propostas globais para a sociedade. O homem folclórico é idealizado romanticamente como um homem de necessidades básicas, um homem que não se revolta, um homem que aceita a vida como ela é e que mesmo assim com todas essas limitações reproduz o “espírito” mais profundo de Alagoas - nos seus folguedos, nas suas danças, na sua literatura oral, na sua arte de fazer brinquedos, na sua arte de confeccionar objetos populares . É uma visão paternalista desse homem; é uma visão que isola esse homem da modernidade, da vida real e do universo político. Eu creio que é uma visão extremamente cruel, extremamente preconceituosa que nega a humanidade ao homem do povo. Ao invés de trazer o homem do povo para o diálogo com o intelectual de classe média, ao invés de respeitar esse homem do povo ele é etiquetado, condicionado dentro de determinados espaços em que ele existe como uma espécie de espécime exótico; o exótico que seria fundamental pra determinar a singularidade da identidade alagoana. [20]


Essa forma de trazer a massa explorada para o seu discurso revela que a modernização do pensamento da classe dominante é extremamente limitada, tratando-se de um movimento de inovação marcado fortemente – enquanto predominância - pelo velho, ou seja, pela continuidade das tradições preconceituosas que assumem uma nova roupagem. Nada mais é do que a “modernização conservadora” que assola não só o pensamento da elite sobre a realidade, mas é imanente ao próprio movimento verificado na realidade material; o historicamente novo é submisso ao historicamente velho no desenvolvimento capitalista de Alagoas.
À guisa de conclusão, a formação capitalista alagoana bem como a vinculação de classe do autor são os elementos que fundamentam a sua absorção da abordagem positivista a respeito do folclore. Os fundamentos básicos da conceituação positivista clássica a respeito do folclore servem bastante ao seu intento: encarar o folclore como uma área específica do saber à medida que possui um objeto sui generis – a civilização tradicional como diz o próprio autor – ; ciência essa que está isenta das explicações causais comuns ao saber científico pelo fato de que seu objeto não possui implicações sociais amplas, pois se trata de anacronismo em relação à modernidade em voga. Estes aspectos estão em consonância com o objetivo de Théo Brandão de atualizar a imagem da classe dominante alagoana sobre o estado, pois: 1) a cultura popular (folklore) por está apartada da modernidade é entendida como uma dimensão da sociedade carente de autonomia, composta por sujeitos passivos presos à tradição, residindo nela, ao mesmo tempo, o “espírito alagoano” que é generalizado a toda Alagoas e universalizado no tempo, fundamentando-se uma visão paternalista sobre o homem do povo; 2) por se trata de anacronismo cultural, o folclore não deve ser encarado como uma dimensão de grande importância explicativa à realidade social existente, cabendo apenas a sua descrição e a busca pelas suas origens por parte dos folcloristas; ou seja, o folclore está isento das contradições que permeiam o mundo moderno, sendo um espaço onde não há conflito, mas sim harmonia típica do “espírito alagoano”. Diz Golbery Lessa sobre essa carência de teorização:

Eu creio que, a partir da perspectiva de Théo Brandão, teorizar muito sobre o homem folclórico alagoano implicaria em uma série de antinomias, ficariam mais explícitos todos os defeitos que eu sublinhei anteriormente. Ou seja, não teorizar – não sei se ele tinha isso consciente ou inconsciente – implicava em esconder essas várias antinomias éticas e teóricas que a abordagem dele do folclore alagoano possui.[21]


Esta imagem sobre Alagoas proposta por Théo Brandão foi acatada por nossa elite local pelo fato de que satisfazia ao seu interesse, visto que a sua definição da identidade alagoana se coadunava com a prospecção que esta tinha em relação ao futuro do estado. Isso não desconsidera a existência de frações conflitantes no interior da elite alagoana, mas reconhece que a proposta de Théo Brandão expressa uma interpretação da identidade alagoana bastante plástica, capaz de angariar concordância seja na fração da elite mais relacionada ao capital mercantil-industrial, seja naquela parcela agro-exportadora que reconhece o processo modernizante como inelutável – mesmo que não seja capaz de fazer cessar o sentimento nostálgico dos bangüês alagoanos.
[1] Diz Florestan Fernandes: “Para os autores da época e ainda para alguns contemporâneos o termo cultura significaria o patrimônio cultural das classes mais elevadas; e seria, caracteristicamente, uma cultura transmitida por meios escritos, compreendendo todos os conhecimentos científicos, as artes em geral e a religião oficial. O termo folclore significaria e abrangeria, pois, todos os elementos que constituem o que se poderia entender “a cultura das classes baixas”, transmitida oralmente. Aqui começou a série de analogias e termos de comparações entre os “meios populares” e os “primitivos”, no folclore, ambos considerados povos pré-letrados ou “incultos”, isto é, gente sem a cultura das classes “superiores”. (Fernandes, Florestan, 1920-1995. O folclore em questão/ Florestan Fernades. – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2003. – (Raízes). Pg.39 nota 1)
[2]Fernandes, Florestan, 1920-1995. O folclore em questão/ Florestan Fernandes. – 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2003. – (Raízes).
[3] Palestra ministrada ao Rotary Club em 1949; coletada no Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas e extraída do livro Folclore de Alagoas/Maceió – Alagoas (1949).
[4] Frase Maunier retirada do livro acima citado de Florestan Fernandes, pg. 60.
[5] Para evitar equívoco, deixa-se claro que a busca pelas origens de uma formação social não é necessariamente realizada mediante uma abordagem positivista - que isola um determinado complexo da totalidade social, como o folclore, identificando nele uma “essência” pétrea e inatingível que não se transforma em função das mudanças evidenciadas na realidade social. Longe dessa universalização de uma essência hipostasiada, o materialismo histórico busca apreender a essência de uma formação social considerando-a historicamente, como produto de práticas sociais específicas. Refuta-se categoricamente o suposto abismo existente entre essência e fenômeno que hipostasia o primeiro e restringe a historicidade ao segundo; em suma, a realidade social nada mais é do que a articulação complexa existente entre esses dois momentos distintos igualmente históricos e que se unificam mediante uma série de mediações.
Mais considerações sobre a relação essência-fenômeno ver em Lessa, S. Notas sobre a historicidade da essência em Lukács no link www.sergiolessa.com
[6] O prêmio referido advém do 4ª concurso de monografias sobre o folclore nacional instituído em 1949 pela discoteca pública municipal/SP.
[7] Citação extraída da dissertação de Ester Vaisman “O problema da Ideologia na Ontologia de G. Lukács” proveniente do livro de W. Abendroth Conversando com Lukács.
[8] Os grifos são meus.
[9] Seguindo a lógica de Théo Brandão, poderíamos afirmar que a carroça a propulsão animal – com pneus de fusca e molas de caminhão - que faz parte do cotidiano da capital alagoana se configura enquanto uma reminiscência arcaica, tradicional, que convive numa relação de externalidade com os meios de transporte modernos (carros, motos, etc.). Neste sentido, a carroça também faria parte do que há de mais puro do ser alagoano: seria um exemplo da nossa tradição que não se rende ao movimento da sociedade em vias de modernização. Entretanto, longe de possuir um significado reificado cunhado em suas origens – engenhos coloniais – que nada tem a ver com a nossa modernidade, a carroça é um grande exemplo que demonstra a imbricação entre o novo e o velho do capitalismo alagoano mesmo em sua fase globalizada; longe de ser um anacronismo se configura enquanto um partícipe direto da nossa formação capitalista hiper atrasada onde o novo e o velho se sintetizam dialeticamente numa totalidade complexa, tendo o velho um caráter predominante.
[10] Esta relação entre a interpretação a respeito do ser com o vir-a-ser é imprescindível para pensarmos a cultura. Como um conjunto de idéias e valores assentados em uma dada realidade sócio-histórica, a cultura dá sentimento de pertença aos indivíduos de maneira que estes ocupem um dado papel nesta sociabilidade; entretanto, a sociedade não é uma mera reprodução do mesmo, mas se depara com o contínuo jorrar do novo, com o incessante surgimento de necessidades que precisam ser respondidas pelos sujeitos. É neste momento que identidade cultural é fundamental para o vir-a-ser da sociedade, pois as respostas que os sujeitos históricos darão às necessidades oriundas de seu ser social estão em larga escala delimitadas por este conjunto de idéias e valores que chamamos de cultura. O homem responde às necessidades históricas de seu ser social escolhendo entre as alternativas inscritas no âmago deste mesmo ser social, sendo a identidade cultural fundamental para estes momentos de tomada de decisão entre alternativas.
[11] Citação extraída do livro Interpretação Da Província – Estudos da Cultura Alagoana, especificamente do artigo Representação Social na escrita da cultura alagoana no século XIX, pg. 32.
[12] Idem, pg. 35.
[13] Idem, pág. 36.
[14] Conferir em Outra Alagoanidade.
[15] Podemos dizer que há em Arthur Ramos uma modernização mais progressista do que a existente em Théo Brandão. Para este último, a “essência alagoana” contida no folclore era uma amálgama decorrente da posição simétrica – eqüitativa – das três matrizes culturais basilares da nossa formação: a africana, a indígena e a portuguesa; ao que nos parece, há nesta abordagem a diluição da relação assimétrica baseada no domínio econômico, político e cultural da matriz portuguesa representada nos senhores de engenho. Já em Arthur Ramos, parece-nos que as relações de poder existente entre as matrizes culturais são reconhecidas e não dissolvidas em um suposto resultado final – o folclore; tanto o é que Arthur Ramos se incumbiu de realizar interpretações sobre o negro e o índio que explicitassem tais dominações e que servissem de base para políticas públicas específicas que reconhecessem a discrepância histórica.
[16] Outra Alagoanidade, Golbery Lessa.
[17] O fato de Théo Brandão ter estudado a identidade alagoana a partir do ponto de vista de sua própria classe não significa dizer que esta relação seja absoluta, inexorável. Afinal, ícones do pensamento do proletariado como Marx, Engels, Lênin, Trotsky e Lukács não faziam parte desta classe propriamente dita, mas abandonaram o ponto de vista de suas classes de origem e assimilaram o ponto de vista do trabalho para pensar a realidade social em que viviam. Michel Löwy nos mostra que alguns intelectuais da pequena-burguesia e até da própria burguesia assumem o ponto de vista da classe trabalhadora por serem sensíveis à antinomia existente entre o capitalismo e os valores humanistas propagados pela própria burguesia revolucionária. Instalada essa “crise” de identidade nestes sujeitos, abrem-se dois caminhos a serem escolhidos por eles: por um lado, o da crítica irracionalista-romântica ao realmente existente que conduz a um pensamento místico como forma de superar a angustia existencial; e por outro lado, a opção da crítica do ser social burguês a partir da ótica do trabalho, que conduz a uma crítica profunda do capitalismo ao mesmo tempo em que se torna claro a possibilidade do vir-a-ser histórico impulsionado pela classe trabalhadora.
[18] Termo cunhado por Gramsci em Os Intelectuais e a Organização da Cultura.
[19] Coutinho, Carlos Nelson. Intervenções: o marxismo na batalha das idéias – São Paulo: Cortez, 2006. pg.144
[20] Citação retirada da entrevista realizada pelo bolsista Gabriel Magalhães Beltrão que segue em anexo.
[21] Citação também extraída da entrevista.

10.6.09





Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA
Superintendência Regional de Alagoas – SR-22/AL



NOTA TÉCNICA 01-2006

Alternativas sustentáveis para as terras e os parques industriais das antigas usinas AGRISA e PEIXE a partir das suas eventuais desapropriações para fins de reforma agrária




Assessoria do Gabinete da Superintendência*




*Nota Técnica elaborada por Golbery Lessa, Especialista em Política Pública e Gestão Governamental do quadro funcional do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), em exercício no Incra (SR22) como assessor especial do Gabinete da Superintendência, a partir dos debates do seminário “Viabilidade técnica da Agrisa integrada ao Plano Regional de Reforma Agrária e alternativas econômicas para a região” e das considerações do grupo de trabalho formado no seminário para apresentar uma posição sobre o tema.


Maceió – março de 2006

ÍNDICE

Introdução
1. Usina de açúcar e destilaria de álcool: os piores negócios do mundo
1.2. Setor Sucroalcooleiro e o Capitalismo Periférico em Alagoas
2. Cooperativa agroindustrial sucroalcooleira: todos os males e nenhum benefício
2.1. Quais são as vantagens de uma cooperativa?
2.2. O funcionamento da Agrisa como cooperativa agroindustrial
2.3. Uma Alternativa: cooperativas de produção de frutas, cereais e hortaliças
2.3.1. Introdução e Metodologia
2.3.2. Análise das Tabelas
2.3.3. Conclusões e Projeções
3. Referências Bibliográficas
4. Anexo












Introdução

A provável desapropriação de 20 mil hectares de terras pertencentes ao grupo empresarial Nivaldo Jatobá (áreas ligadas às falidas usinas AGRISA e PEIXA), localizadas nos municípios de Joaquim Gomes, Flexeiras e São Luís do Quitunde, tornará disponível para o assentamento de trabalhadores rurais sem-terra a maior área da história de Alagoas pertencente a um único proprietário e, por outro lado, que representa trinta por cento do que já foi disponibilizado em toda a história da reforma agrária do Estado. A possibilidade de equacionar alguns dos mais agudos problemas sociais desses municípios (já que haveria espaço para o assentamento de 2 mil famílias) tem deixado mais evidente a necessidade de aprofundarmos a reflexão sobre os rumos da reforma agrária, principalmente no que se refere às alternativas econômicas para o desenvolvimento dos assentamentos e no que toca à sua relação com os outros setores do mundo rural e da sociedade como um todo.
As grandes dificuldades enfrentadas pelos cerca de cem assentamentos existentes em Alagoas, expressas na freqüente desorganização da produção, na falta de integração com os mercados locais, nacionais e internacionais e no caráter rotineiro da tecnologia que empregam, unidas à ideologia legitimadora que envolve secularmente a lavoura da cana-de-açúcar, constituíram um espaço para que alguns setores técnicos da máquina pública e da academia passassem a aceitar a possibilidade de que as terras e o parque fabril das antigas usinas AGRISA e PEIXA fossem, tão logo desapropriados, alocados para a formação de uma cooperativa agroindustrial constituída por famílias de trabalhadores sem-terra com o objetivo de produzir cana, açúcar e álcool. A proposta tem sido apresentada como inovadora, já que aparece como uma espécie de superação da posição considerada sectária de perceber a lavoura da cana-de-açúcar em si mesma como a causa essencial dos problemas fundiários e agrícolas do Leste Alagoano.
Como procuraremos detalhar neste texto, esta proposta constitui-se no contrário do que aparenta. Uma cooperativa para produzir o mesmo que os usineiros de Alagoas têm produzido há séculos não possui viabilidade econômica e nem supera a lógica perversa das relações sociais típicas do capitalismo periférico estabelecido em terras caetés. A não ser que se transforme em um enorme ralo por onde as instâncias do governo federal e estadual façam correr rios de subsídios, insustentáveis a partir de quaisquer padrões de desenvolvimento econômico, social e político, a referida cooperativa sucroalcooleira teria poucas chances de competir vitoriosamente no mercado e, caso conseguisse fazê-lo, tenderia a reproduzir as dimensões mais perversas do modelo canavieiro tradicional: superexploração do trabalho, monocultura exportadora (que inibe o desenvolvimento do mercado interno e da divisão social do trabalho), destruição dos recursos naturais e fortalecimento de uma cultura política oligárquica e patrimonialista. Resultados que estariam em pleno desacordo com as principais diretrizes do Plano Nacional de Reforma Agrária, o qual está alicerçado no desenvolvimento sustentável da agricultura familiar e na crítica ao modelo do chamado agronegócio.
1.Usina de açúcar e destilaria de álcool: os piores negócios do mundo
Ao contrário do que parece, uma unidade fabril do setor sucroalcooleiro é um dos empreendimentos mais difíceis de sobreviver em um mercado competitivo. Sem uma série de interferências e de ausências da máquina estatal, bem como várias práticas ecológica e socialmente condenáveis, dificilmente este setor teria sobrevivido no Brasil, notadamente na região Nordeste. Os principais problemas da indústria canavieira têm relação direta com os limites que a própria cana e seus derivados colocam para a sua produção em moldes capitalistas, a saber: 1) a pouca absorção de mão-de-obra durante a fase do plantio, da maturação e do processamento da matéria-prima; e 2) a natureza imediatamente perecível que a cana adquire após a colheita.
A baixa absorção de mão-de-obra na produção de cana-de-açúcar repete-se, em outro patamar e por outras razões, no seu processamento. A natureza essencialmente química da fabricação do açúcar e do álcool impõe um processo de trabalho no qual os operários não entram em contato direto com a matéria-prima, o que torna mais rápido, como em toda indústria química, o processo de diminuição do número de trabalhadores por unidade fabril; isso significa um rápido avanço relativo do capital constante em relação ao capital variável; fato que gera uma diminuição particularmente rápida no valor impregnado em cada unidade dos produtos finais.
O caráter extremamente perecível que a cana-de-açúcar adquire após o corte impede a existência de um comércio mundial desta matéria-prima. Segundo os técnicos mais experientes do setor, atualmente só é economicamente viável a cana plantada até 100 km de distância da unidade fabril em que será processada, o que é determinado pelos altos custos relativos do transporte e pelo caráter perecível do produto. Essa natureza perecível da cana colhida também impede a existência de um mercado nacional e mesmo estadual; o processo de compra e venda desta gramínea acaba sendo realizado num circuito municipal ou intermunicipal. Esse caráter perecível torna também impossível a constituição de estoques. Qualquer usina é obrigada a localizar-se muito próxima dos canaviais e, quase sempre, está territorialmente envolvida por estas plantações.
As singularidades físicas e químicas da planta impõem outras particularidades decisivas para as relações capitalistas no setor. A inexistência de um mercado mundial de cana para abastecer ininterruptamente as unidades fabris e a impossibilidade da constituição de estoques desta matéria-prima que tivesse o mesmo objetivo impõem à parte industrial do setor uma grande diminuição na velocidade de rotação do capital, o que determinará uma tendência de baixa significativa na taxa de lucro. Sabe-se que dois capitais de igual grandeza e iguais taxas de mais-valia e de lucro produzem diferentes massas de mais-valia e de lucro, se tiverem tempos de rotação diferentes. Ou seja, pressupondo duas empresas de mesmo capital, é mais rentável a empresa que fabrica e vende mercadorias todos os dias do que uma empresa que gasta um tempo mais longo entre a preparação e a venda de seus produtos. A primeira empresa faz girar o seu capital circulante (matéria-prima e gastos com mão-de-obra) mais rapidamente e, portanto, mais vezes, o que determina uma maior absorção de mais-valia, uma maior massa de lucro, um menor tempo de amortização do capital e uma maior disponibilidade de liquidez.
Enquanto uma indústria automobilística produz e vende muitos veículos a cada dia do ano, uma usina produz e vende açúcar apenas durante seis meses de cada ano, já que precisa esperar a maturação dos canaviais. Os meses de paralisia somente podem ser compensados pelo aumento das escalas produtivas (mas esse recurso tem limites relativamente estreitos, já que os aumentos de escala também geram externalidades negativas, como o aumento do tempo de amortização do capital) e pela brutal elevação da taxa de mais-valia, entre outros expedientes de graves conseqüências sociais e ambientais.
Para aumentarem sua massa de lucro e continuarem acumulando capital, os usineiros têm utilizado os seguintes expedientes: 1) ampliação das áreas de “cana própria” com o objetivo de amealhar as rendas absoluta e relativa da terra e para tornar frágil a posição dos fornecedores de cana no mercado dessa matéria-prima; 2) aumento contínuo das escalas de produção, com o intento de diminuir o impacto financeiro negativo da baixa absorção de valor por unidade de cana e de produto final, o que implica na multiplicação dos latifúndios e na imposição da monocultura; 3) efetivação de altas taxas de sonegação de impostos estaduais e federais, bem como de retenção ilícita das contribuições para a previdência social; 4) descumprimento de vários artigos fundamentais da legislação trabalhista, com graves prejuízos para a vida profissional dos trabalhadores canavieiros; 5) combinação do uso da mais-valia relativa com a mais-valia absoluta, adquirindo esta última contornos realmente trágicos, expressos nos baixíssimos salários e na alta intensidade do trabalho, com impactos corrosivos para os sindicatos e outras organizações preocupadas com a organização dos trabalhadores agrícolas; 6) descumprimento da legislação ambiental, com o intuito de diminuir os custos de produção, com trágicos resultados para o equilíbrio ecológico; e 7) radicalização da captura das instâncias estadual e municipal da máquina pública e da cultura patrimonialista.
1.2. Setor Sucroalcooleiro e o Capitalismo Periférico em Alagoas
A agroindústria sucroalcooleira alagoana não é a industrialização do campo, é a ruralização da indústria. Constitui-se em um verdadeiro dinossauro econômico; a sua calda agrícola extensiva embarga-lhe o passo, esmaga gerações de trabalhadores alagoanos, atravanca a divisão social do trabalho e inibe o desenvolvimento dos traços mais positivos do capitalismo. Nas condições alagoanas, este setor econômico tem, além disso, o enorme inconveniente de possuir um grande potencial de reproduzir-se por séculos. Isso acontece não porque Alagoas tenha uma vocação genética, cultural ou metafísica para produzir açúcar, mas porque essa agroindústria inibe radicalmente a divisão social do trabalho e, portanto, dificulta muito o surgimento de atividades econômicas que possam superá-la. Há séculos o litoral nordestino, o alagoano em particular, é dominado pelos canaviais e pelo subdesenvolvimento radical que impõem.
Não podemos confundir o desenvolvimento agrícola do capitalismo clássico com o desenvolvimento agrícola do capitalismo periférico. Por exemplo, a grande propriedade agrícola nos Estados Unidos de hoje, que tira vantagens do uso da economia de grande escala, é resultado do desenvolvimento da pequena propriedade rural capitalista, é a expressão de toda uma trajetória progressista e democrática durante a qual criou-se um amplo mercado interno de bens agrícolas, o qual foi decisivo para o barateamento dos alimentos e, portanto, para aumento relativo da renda dos trabalhadores e para a consolidação da mais-valia relativa em detrimento da mais-valia absoluta (como se sabe, a mais-valia relativa é também acionada pelo barateamento dos bens consumidos pelos trabalhadores, que pressupõe o desenvolvimento da produtividade na constituição desses produtos). No caso alagoano, a grande propriedade é a expressão do mais completo atraso, representa a negação do caminho progressista e democrático trilhado pelos Estados Unidos. A economia de grande escala das usinas alagoanas não expressa a modernidade, mas o desperdício em escala aumentada e representa uma enorme muralha que paralisa a verdadeira modernidade capitalista na agricultura; modernidade que se fundamenta na oferta de alimentos a preços constantemente declinantes para os trabalhadores urbanos.
Alguns intelectuais têm utilizado, muitas vezes inconscientemente, a teoria de Lênin sobre o caráter progressista da economia de escala na agricultura para defender o setor canavieiro alagoano. Ora, Lênin se referia a economia de grande escala no contexto do capitalismo clássico e não no seio dos capitalismos prussiano e colonial. O autor de O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia sabia mais do que qualquer outro cientista as enormes diferenças entre o caminho clássico e o caminho não clássico de desenvolvimento da agricultura, tanto que foi quem mais aprofundou as reflexões de Marx e de Engels sobre o tema. Sabia claramente que em um contexto prussiano ou colonial a grande propriedade agrícola era um estorvo para o avanço do capitalismo no campo e em todas as esferas da sociedade. Utilizar de maneira descontextualizada a teoria do líder bolchevique sobre determinadas vantagens da grande propriedade na agricultura é o mesmo que inverter essa teoria e inviabilizar a compreensão adequada das realidades particulares.
Apesar de todas as debilidades econômicas que possuem e de constituírem-se na causa principal do atraso do capitalismo alagoano, as usinas criam fortunas milionárias para os seus proprietários e impõem-se na paisagem com a perenidade das pirâmides. Isso é possível devido à colaboração dos governos federal e estadual e, principalmente, pelo fato de que a sociedade alagoana é essencialmente organizada no sentido de doar todos os seus recursos, de todas as suas esferas, para que essas empresas possam dar a maior massa de lucro possível aos seus proprietários. Por um lado o governo da União, por meio de subsídios generosos, da reserva de parte do mercado exterior (a chamada cota americana) e nordestino para o açúcar alagoano, afasta o máximo possível a concorrência e todos os outros mecanismos de mercado que representem perigo para esses capitais; por outro lado a sociedade e seu aparelho estatal são utilizados por essas empresas como um vasto campo de concentração, no qual podem encontrar ilimitados sacrifícios humanos de toda a ordem e magnitude. Outro suporte básico dessas empresas é a monopolização da renda da terra, ou seja, daquele ganho proveniente não do capital empregado mas do simples fato de deter um monopólio geográfico. Como as propriedades rurais dessas empresas são imensas, grandes parcelas dos seus ganhos são provenientes desse monopólio de largos pedaços da natureza; ganhos que não custam nenhum investimento.
Pela ajuda generosa que historicamente ofereceram ao setor canavieiro, os vários governos federais do passado receberam o apoio de muitos deputados e senadores alagoanos, os quais, em sua maioria, são patrocinados diretamente pelos usineiros e sempre se colocam como fiéis defensores dos interesses desses capitalistas. A maioria da população alagoana, ao contrário, não ganha absolutamente nada por constituir-se em um mero instrumento da lucratividade desses capitais; cada centavo dos lucros das usinas é constituído por cada fato concreto da tragédia social, cultural e política vivida pela maior parte do povo alagoano. Entre outros fatos conhecidos de todos, as fontes de cada partícula dos ganhos monetários da agroindústria canavieira alagoana são as seguintes: 1) a morte das crianças da classe trabalhadora e o seu sepultamento em covas rasas; 2) a inibição do seu crescimento físico e intelectual pela precariedade dos alimentos e pela debilidade dos sistemas de saúde e educação; 3) a velhice precoce de homens e mulheres devido à dureza do trabalho e aos longos períodos de subalimentação e doença; 4) a destruição das culturas popular e erudita e de milhares de novos talentos artísticos, literários e científicos; 5) a precariedade da alimentação que atinge toda as regiões do Estado; 6) a marginalização de todos os valores morais democráticos e humanistas em benefício da prepotência, das hierarquias ilegítimas e do poder econômico; 7) a inexistência de recursos estatais para a constituição de políticas públicas adequadas; 8) a repressão à liberdade de pensamento e de organização sindical e política; 9) a destruição das estradas, do equilíbrio financeiro do sistema energético e de outros elementos da infra-estrutura sob a responsabilidade do estado; 10) o descumprimento das legislações trabalhista e ambiental e o aniquilamento de todos os recursos naturais mais importantes, como as matas, os animais silvestres e as fontes de abastecimento de água potável; e 11) o aproveitamento da desvalorização da moeda nacional frente ao dólar ou ao euro para a ampliação de sua rentabilidade.
As precárias condições de vida que surgem desse modelo econômico tendem a tirar a legitimidade ideológica da burguesia agroindustrial; mesmo gastando muito em várias formas de propaganda ideológica, esta classe está sempre na iminência de ficar desmoralizada e desacreditada diante da opinião pública e da massa popular. O seu domínio, geralmente, sustenta-se muito mais na coerção do que no consenso, ou seja, mais na força bruta do que na sua capacidade de convencer as outras classes sociais das positividades do modelo de sociedade que propõe. Para que evitemos profundos erros teóricos e políticos, é preciso perceber claramente que esta classe social não tem condições objetivas de propor uma alternativa de desenvolvimento menos precário e desumano; as suas debilidades econômicas congênitas empurram-na para uma brutalidade constante e crescente e para o mais radical estreitamento político. Não há qualquer setor progressista, democrático e antiimperialista no seio dessa burguesia agroindustrial. Nenhum membro dessa classe dominante pode propor o progresso, a democracia e defesa dos interesses de Alagoas e da soberania nacional porque essa classe não representa o pólo moderno no nosso Estado, representa a união indissolúvel de um moderno atrasado, em relação ao moderno das regiões mais desenvolvidas do país, com um atraso também mais acentuado do que o atraso dessas regiões. Para esta classe social, combater o atraso seria combater a si mesma, o que certamente não está disposta a fazer. Além de construir, pela utilização da mais-valia absoluta, uma sociedade de miseráveis, a agroindústria alagoana, por seu caráter exportador, cria uma sociedade sem estabilidade econômica, sem mercado interno substancial e carente de qualquer grau significativo de divisão social do trabalho. A atual economia alagoana superou a escravidão, porém conserva ainda, de maneira modernizada, os outros traços da economia alagoana do período colonial; ainda baseia-se na monocultura, na união entre agricultura e indústria e na exportação dos seus principais produtos.
Quando uma empresa vende um milhão de dólares, está trocando, do ponto de vista do valor, “seis por meia dúzia”, ou seja, está trocando um milhão em mercadorias por um milhão em dinheiro; o valor econômico é o mesmo, tendo havido apenas uma mudança na maneira de expressar-se: antes, expressava-se em mercadoria, depois da troca, expressa-se em dinheiro. O lucro das empresas não vem dessa troca de valores iguais; o lucro vem da troca desigual entre os empresários e seus trabalhadores, origina-se no fato de que os trabalhadores oferecem uma mercadoria (sua força de trabalho) que produz muito mais do que aquilo que os capitalistas pagam por ela; o lucro do capitalista vem dessa troca desigual e não da venda ao consumidor. Pelo desconhecimento desse mecanismo e o seu relacionamento com a constituição dos preços, muitas pessoas imaginam que a exportação é a única e principal fonte de riqueza de qualquer formação social. Ora, os países mais desenvolvidos do mundo baseiam sua riqueza no mercado interno e não na exportação. Os EUA e o Japão, por exemplo, não exportam atualmente mais do que quinze por cento de seus produtos; essas nações vêem o mercado exterior apenas como uma válvula de escape para os seus excessos de produção e como um dos mecanismos básicos de controle do valor de suas moedas.
O preço de uma mercadoria oscila em torno do seu valor, mas a estabilização do mercado desta mercadoria tende a igualar valor e preço. Antes de haver a confluência completa entre valor e preço, é possível ganhar ou perder vendendo esta mercadoria acima ou abaixo do seu valor. O setor sucroalcooleiro alagoano dá tanta atenção às exportações pelo fato de que, por meio destas, consegue vender suas principais mercadorias acima do valor contido nelas, o que é possibilitado pelo sistema de câmbio, isto é, pela conexão particular da moeda brasileira com a moeda norte-americana e o euro. Em outras palavras, as trocas econômicas entre dois países, pelo fato de serem muito afetadas por variáveis não-econômicas (taxas, impostos e subsídios) e pela diferença de produtividade nas duas nações, constituem um mercado particularmente afetado pela dificuldade de confluência entre valor e preço. O setor sucroalcooleiro alagoano aproveita esta natureza particular do mercado mundial para auferir um lucro extra que, na maioria das conjunturas, não acontece na mesma magnitude no abastecimento do mercado interno.
Pelo fato de exportar a maior parte de seus produtos, Alagoas entra em um círculo perverso: quanto mais exporta, mais fica dependente de poucos produtos e de poucos mercados e, por outro lado, mais inibe a diferenciação interna da sua economia e mais reproduz o modelo exportador. O Estado ergue, então, o mesmo tipo de economia no qual o Brasil estava submerso antes do processo de substituição de importações, iniciado nos anos trinta. O país exportava café e outros produtos tropicais e importava todos os outros bens que necessitava. É o que ocorre ainda hoje em Alagoas; importamos de outras formações sociais (principalmente de Estados brasileiros) quase todos os produtos industrializados e agrícolas, bem como grande parte dos serviços que necessitamos. Essa situação inviabiliza qualquer desenvolvimento econômico capaz de tornar a economia auto-sustentável e de possibilitar uma melhor distribuição dos recursos econômicos entre as várias classes e setores sociais da população.
Enfim, a grande propriedade agroindustrial é a principal protagonista do atraso da Zona da Mata alagoana. O interior dessas propriedades é um dos locais privilegiados da reprodução da subjugação do historicamente novo pelo historicamente velho e da profunda inércia histórica que é a característica básica desta formação social. A condenação desse tipo de empreendimento e da espécie de capitalismo que pressupõe não é apenas ou principalmente um impulso ético, configura-se no resultado de uma análise apoiada em uma constatação científica que acompanha de perto algumas das mais importantes teorias produzidas pelas correntes progressistas de pensamento existentes no Brasil e no mundo.

2. Cooperativa agroindustrial sucroalcooleira:
todos os males e nenhum benefício

2.1. Quais são as vantagens de uma cooperativa?

Quais seriam as diferenças e identidades entre uma usina administrada por uma cooperativa de trabalhadores rurais e uma usina administrada por capitalistas? Como toda cooperativa em uma sociedade regida pelo mercado, a entidade proposta seria uma espécie de “capitalista coletivo”, contudo com algumas singularidades em relação a uma empresa capitalista tradicional, empresas estas que se distribuem entre as de capital fechado e as de capital aberto. Em relação a uma empresa de capital aberto, qualquer cooperativa possui como principal singularidade o fato de que cada um de seus membros tem a mesma quantidade de poder nas decisões gerenciais. Cada associado representa um voto na assembléia geral e, portanto, as diferenças em termos de número de cotas, ou seja, as distintas quantidades de investimento individual, mesmo que determine diferentes rendimentos, não se expressam em um superior poder de influenciar a gestão. Como se sabe, uma sociedade anônima comporta diversos tipos de ações e os participantes podem enfeixar distintas porcentagens do total desses papéis, isso possibilita diferentes quantidades de poder de gestão e de acesso aos rendimentos líquidos da empresa. Em relação a uma empresa de capital fechado, a cooperativa possui a singularidade de ser um empreendimento igualitário em termos de gestão.
O igualitarismo na gestão, que é da essência de uma cooperativa, determina que esse tipo de empresa seja mais adequado para determinados ramos produtivos e operações econômicas e menos adequado para outros. A igualdade de todos na gestão inibe o interesse dos grandes capitalistas que estão em busca de alta rentabilidade; isso impõe, na grande maioria dos casos, graves limites para o tamanho do patrimônio e para o capital de giro de uma cooperativa, o que vai determinar a sua inadequação aos ramos da economia nos quais os investimentos são mais altos. Uma grande siderúrgica dificilmente pode sobreviver no mercado durante um tempo significativo se for organizada como cooperativa. Na verdade haveria enormes dificuldades até para formar o capital inicial, que é muito grande nesse ramo. Existem exceções a essa tendência, mas são determinadas por circunstâncias muito específicas, de natureza política e de capacidade de obtenção de consenso em torno da visão do sistema de idéias cooperativista.
O sistema cooperativista é eficiente para reunir em um único corpo econômico os pequenos e médios produtores, consumidores e trabalhadores que precisam adquirir ou vender produtos ou serviços, bem como ter acesso mais vantajoso ao crédito. Ou seja, a cooperativa atua bem no sentido de diminuir a concorrência entre os pequenos e médios agentes econômicos no seu confronto cotidiano com os grandes agentes ou no seu contato com as dificuldades infra-estruturais do seu ramo de atividade ou de seu consumo individual. As estatísticas mais recentes sobre o cooperativismo no Brasil comprovam essa maior adequação do sistema cooperativista a essas funções; demonstram também que as cooperativas na agropecuária são mais numerosas do que em outros ramos, seguidas pelas cooperativas de crédito e de trabalho. Outros números da mesma fonte nos informam que a maior parte dessas cooperativas é formada por pequenas e médias empresas. As cooperativas de produção, que abarcam a indústria, têm números pouco expressivos.
2.2. O funcionamento da Agrisa como cooperativa agroindustrial
Pressupondo as características do cooperativismo e da economia mercantil, bem como suas singularidades em Alagoas, como funcionaria uma cooperativa agroindustrial que assumisse as terras e o parque fabril das usinas AGRISA e PEIXA? Como qualquer usina, cada uma dessas empresas seria uma mistura entre agricultura e indústria, contudo teria a singularidade de também se constituir em uma mistura entre agricultura familiar e patronal. As duas mil famílias assentadas seriam gestoras da parte coletiva do projeto, formada pela área agrícola comum (se houvesse opção pela constituição de uma área desse tipo, como ocorreu na usina Catende, no município do mesmo nome, em Pernambuco) e pelo parque industrial, bem como das suas respectiva parcelas individuais. Na medida em que a cana, o álcool e o açúcar são produtos que impõem uma agricultura extensiva e uma produção industrial de grande escala e o cooperativismo não se compatibiliza com esse modelo, a configuração organizacional proposta pressuporia graves problemas de adequação do cooperativismo à parte fabril e aos tipos de mercadorias produzidas.
Haveria também problemas para a consolidação da lógica da agricultura familiar. Já que as parcelas seriam necessariamente muito pequenas, com cerca de sete hectares utilizáveis, e as famílias não poderiam fazer retiradas significativas do lucro do parque industrial sem descapitalizar a empresa, o caráter extensivo da lavoura canavieira, que determina um baixo rendimento por hectare, imporia uma renda agrícola muito baixa para cada família e talvez não as pudesse elevar acima do nível da pobreza, mesmo somando esta renda com a auferida pelos salários ganhos na parte industrial e no trabalho na lavoura comum. A possível coletivização não teria qualquer efeito significativo no sentido de aumentar a renda ou a produtividade, já que a constituição de uma área comum a partir da diminuição das parcelas individuais não teria o condão de multiplicar os rendimentos por hectare e nem diminuir o número de pessoas que precisaria obter rendimentos da mesma área de produção, bem como não representaria nenhuma modificação técnica relevante (pressupondo que as famílias teriam acesso às mesmas condições técnicas para trabalharem suas parcelas).
Um dos problemas mais importantes da fábrica residiria no fato de que o seu capital não poderia ser aberto, isto é, não poderia contar com uma capitalização por meio do mercado de ações. Por outro lado, na medida em que a usina teria que passar vários anos sem distribuir parte substancial do seu lucro líquido com seus gestores, sob pena de tornar-se inviável, e os salários seriam parte decisiva da renda das famílias assentadas, a empresa teria sérios problemas com a rigidez relativa da mão-de-obra, já que tenderia (como ocorre na usina Catende) a ser pressionada a não despedir parte significativa da mão-de-obra agrícola (no caso da existência de uma área comum) e industrial no período da entressafra. Sabe-se que as usinas alagoanas e de outros estados dispensam cerca de metade da mão-de-obra industrial e dois terços da mão de obra agrícola na entressafra; essa dura característica do setor sucroalcooleiro imporia uma grande desvantagem comparativa para a cooperativa agroindustrial proposta.
A falta de capitalização, a rigidez da mão-de-obra e as fortes pressões para a distribuição do lucro líquido da empresa provenientes da baixa remuneração da parte agrícola somar-se-iam às dificuldades de ampliação da massa de lucros típicas do setor sucroalcooleiro para transformar rapidamente a cooperativa numa empresa cronicamente deficitária e ávida por subsídios governamentais cada vez mais freqüentes e abundantes. Essa fome de subsídios seria maior do que a apresentada tradicionalmente pelas empresas privadas do setor, na medida em que as dificuldades econômicas seriam maiores. As pressões sobre as instâncias estatais também seriam mais intensas, já que os argumentos sociais seriam mais fortes do que os comumente utilizados pelos usineiros. Estaríamos diante de um “elefante branco” com a cara dos oprimidos da terra. Enfim, a cooperativa agroindustrial sucroalcooleira proposta não seria competitiva e nem proporcionaria uma elevação substancial do padrão de vida das famílias assentadas. Seria uma espécie de ornitorrinco econômico, capaz de transformar em desvantagens as características mais positivas da grande empresa e as da agricultura familiar.


2.3. Uma Alternativa: cooperativas de produção de frutas, cereais e hortaliças

2.3.1. Introdução e Metodologia
O mercado consumidor de produtos agropecuários no Estado de Alagoas é muito significativo, principalmente nos municípios de Santana do Ipanema, Batalha, União dos Palmares, Palmeira dos Índios, Arapiraca e Maceió. A capital, por exemplo, conta com cerca de 800.000 habitantes. Contudo uma porcentagem muito grande do abastecimento alimentar da população alagoana é suprido por produtos provenientes de outros Estados da Federação. Levando em conta o consumo doméstico e o consumo industrial, Alagoas é auto-suficiente apenas em açúcar, leite, alguns tipos de queijo, manteiga, carne bovina, banana, mandioca e laranja lima. A produção de coco-da-baía, que é suficiente para abastecer o consumo doméstico, não é suficiente para abastecer a fábrica da Sococo, uma das maiores da América Latina. O Grupo Coringa, localizado em Arapiraca, que produz alimentos à base de arroz, milho e mandioca, consumiria em quinze dias de trabalho toda a produção alagoana de milho, se esta tivesse preços competitivos e qualidade suficiente para não ser preterida pelo milho de outras regiões do país. União dos Palmares e Palmeira dos Índios, que são grandes produtores de aves de corte e ovos, também possuem uma demanda de milho incapaz de ser suprida pelos produtores alagoanos.
Temos portanto um amplo mercado de produtos agrícolas que poderia ser suprido pela produção local. Com exceção daqueles produtos cujo clima alagoano não permite a exploração comercial, que constituem uma mínima parte dos produtos consumidos, seria possível produzir com competitividade vários alimentos que hoje são importados de outros Estados e de outros países. A principal vantagem competitiva é o baixo custo do frete para que a produção alagoana de hortaliças, cereais e frutas chegue ao mercado do próprio Estado. Alagoas, uma das unidades da federação com o menor território, está cortada por uma rede de estradas significativa. Por outro lado a existência de três climas bem demarcados nas três mesorregiões do Estado determina a possibilidade da produção dos produtos agrícolas mais diversos. Com base nessa constatação geral sobre o mercado de alimentos, veremos nas tabelas em anexo os números que demonstram as boas condições para a produção de hortaliças, cereais e frutas nas terras a serem desapropriadas.
Antes de entramos na análise das tabelas, é necessário apresentarmos as fontes e a metodologia empregadas. As principais fontes foram o IBGE (Censo Agropecuário e PAM - Pesquisa Agrícola Municipal) e a EMBRAPA (as estatísticas sobre hortaliças no Brasil, baseadas em dados da FAO), bem como o estudo sobre o mercado de hortaliças no Maranhão elaborado por uma empresa de consultoria. As fontes organizadas pelo IBGE não trazem dados sobre o rendimento das hortaliças, nem informações (principalmente área colhida e produção total) a partir dos quais calcularmos este rendimento. O Censo Agropecuário traz informações apenas sobre quatro hortaliças e nem para essas é possível calcular o rendimento. A PAM sequer trata desses produtos. Encontramos no site da EMBRAPA, em artigos de revistas especializadas e em outros estudos esparsos (como o que trata do mercado de hortaliças no Maranhão) os rendimentos médios no Brasil das principais hortaliças. Não foi possível encontrar dados sobre o rendimento médio dessas hortaliças em Alagoas, inclusive porque muitas delas nem são produzidas no Estado. Alguns dados sobre rendimento no Brasil são mais precisos; são datados do ano de 2003. Os dados menos precisos, mas confiáveis, como o rendimento médio de determinadas hortaliças não contempladas pelas estatísticas da EMBRAPA, não têm data precisa; apesar disso, procuramos tomar as estimativas dos estudos mais recentes. Não há, portanto, perigo de estarmos trabalhando com rendimentos muito defasados.
As tabelas são organizadas para correlacionar as dimensões macro e micro do mercado de hortaliças, cereais e frutas em Alagoas. Isso implica, naturalmente, na inclusão de números sobre o Nordeste e o Brasil, para que seja possível aquilatar a competitividade da eventual produção local. Cada tabela inicia-se com um balanço do suprimento em Alagoas de cada produto escolhido. O consumo total alagoano é calculado a partir do consumo médio anual por habitante (Pesquisa de Aquisição Alimentar 2003 - IBGE) multiplicado pela população alagoana. O total da produção alagoana por produto foi tirado da PAM de 2003. Segue os rendimentos agrícolas de Alagoas (dividido em suas três mesorregiões), do Nordeste e do Brasil. A distinção por mesorregião é importante devido às suas diferentes condições climáticas e de solo, que são mais adequadas para determinadas lavouras. Como já afirmamos, não apresentamos os rendimentos para Alagoas (e para o Nordeste) de várias hortaliças por falta de dados. Após esse item, as tabelas (no que se refere aos produtos para os quais temos informações) trazem a área plantada e a área colhida em Alagoas. Essas informações são decisivas para aquilatarmos o grau de estabilidade de suprimento dos produtos considerados. Por essa via, percebemos, por exemplo, que o milho e o feijão em Alagoas foram colhidos em menos da metade das áreas nas quais foram plantados. O que revela uma profunda fragilidade em suas cadeias produtivas. O outro item refere-se ao valor por tonelada, por kg e o valor produzido por hectare, bem como ao valor total da produção (ou seja, a soma dos valores recebidos por todos os produtores). Naturalmente, cada um dos três primeiros elementos citados é obtido por meio de determinada relação entre o valor total produzido e área colhida. Por último, as tabelas trazem, para aqueles produtos cuja produção local não supre completamente o consumo, o número de hectares que seriam necessários para o suprimento do mercado alagoano.

2.3.2. Análise das Tabelas
As quatro tabelas (tabelas 1, 2, 3 e 4) relativas ao tema foram constituídas de tal forma que pudessem apresentar os três principais tipos de relação entre o consumo e a produção alagoana. A tabela 1 apresenta exemplos de produtos consumidos e não produzidos localmente. As duas tabelas seguintes apresentam alguns dos principais produtos consumidos, mas insuficientemente produzidos em Alagoas. Os dados sobre esses produtos foram separados em duas tabelas para diferenciarmos os produtos para os quais tivemos acesso a dados completos dos produtos para os quais não encontramos todos os dados necessários, principalmente o rendimento agrícola, a produção total e a área colhida no Estado e no Nordeste. A tabela 4 expõe alguns dos principais produtos que têm o consumo suficientemente coberto pela produção local.
A análise da tabela 1 demonstra que Alagoas não produz cinco dos produtos mais importantes do mercado agrícola: tomate, cebola, batata-inglesa, melão e uva. Os três primeiros são produtos essenciais na cesta básica e os outros dois são significativos para a população que tem um poder de compra mais alto. Todos são plantados no Nordeste com um rendimento superior ao brasileiro, o que revela as boas possibilidades para que sejam explorados pelos agricultores alagoanos. Isto é, a insuficiência de sua produção não é determinada por um problema de inaptidão do clima e do solo local, na medida em que os outros Estados nordestinos de condições naturais parecidas produzem-nos em grande escala e com competitividade. É impressionante o fato de que, apesar de possuir condições naturais propícias, Alagoas não plante e comercialize produtos de tão alto faturamento por hectare. Três dos produtos citados possibilitam um faturamento situado 11 e 14 mil reais (pressupondo o rendimento nordestino); os dois restantes, o melão e a uva, apresentam um faturamento de 21 e 43 mil reais, respectivamente. Para se ter um bom parâmetro de comparação desses faturamentos, é importante observar a cana-de-açúcar colhida em Alagoas no ano 2003 possibilitou um faturamento localizado entre 2.000 e 2.500 reais por hectare, dependendo da produtividade do município considerado.
No que se refere às terras das antigas usinas AGRISA e PEIXA, os dados da tabela comentada e informações agronômicas que tivemos acesso apontam para a possibilidade de as famílias assentadas plantarem melão, tomate, cebola e batata-inglesa e, sob determinadas condições, seria possível explorar até mesmo a uva. Naturalmente o aproveitamento dos produtos referidos pressupõe um grande aporte tecnológico, o qual será necessário criar por meio de um sistema formado pelo o Governo Federal, o Governo do Estado, os Municípios e a sociedade civil. A ausência desse esforço de desenvolvimento tecnológico tem sido uma das principais causas da não exploração desses produtos em solo alagoano, o que por sua vez é um fato determinado pela hegemonia política, econômica e ideológica das grandes propriedades produtoras de cana-de-açúcar.
A tabela 2, uma das que apresentam os produtos insuficientemente abastecidos pela produção alagoana, mostra que o pimentão e o inhame possuem porcentagem significativa (38,85 e 81,16%, respectivamente) do seu consumo suprida pela produção de Alagoas. Os outros produtos (pepino, beterraba e cenoura), igualmente decisivos na cesta básica, têm uma porção mínima de suprimento local. Como já afirmamos, essa tabela está incompleta em relação à anterior. Apesar disso, se usarmos os dados de rendimento do Brasil, podemos ver que é bastante alto o faturamento por hectare desses produtos (média de 6.600 reais), quando comparado ao faturamento das lavouras da cana-de-açúcar, do feijão, do milho e do arroz, que ocupam áreas significativas em Alagoas.
Organizamos a tabela 3 de forma a sublinhar as características específicas de três grupos de produtos. O primeiro grupo é formado pelo arroz, o milho e o feijão; estes são os produtos básicos entre os básicos, já que a maior parte da energia consumida pela população em forma de alimentos é proveniente deles. Pelas suas próprias características, os cereais têm a função de esteio energético em quase todas as nações. No Brasil, o feijão, mesmo não sendo um cereal, também passou a ser uma das colunas da alimentação, principalmente no Nordeste, onde disputando espaço com a mandioca (consumida, como se sabe, principalmente em forma de farinha). O arroz tem uma penetração nacional, enquanto o milho é muito mais presente no Sul e no Sudeste do país. O segundo grupo é formado por três frutas tropicais: o mamão, a melancia e a goiaba. São três das principais frutas consumidas no Brasil e possuem um bom faturamento por hectare. O último conjunto é formado apenas pela castanha de caju, produto de alta rentabilidade quando destinado ao mercado internacional e pouco ofertado no mercado local.
A análise do primeiro grupo demonstra, inicialmente, que há um déficit muito significativo (cerca de 50%) entre a área plantada e a área colhida de feijão e de milho, revelando sérios problemas nessas lavouras. O déficit não é um acidente, os dados do IBGE demonstram que este fenômeno repete-se todos os anos. Esses produtos são explorados principalmente no Sertão e no Agreste. Não temos elementos suficientes para explicar o fenômeno, mas talvez esteja relacionado com a seca (na área produtiva do Sertão), as pragas e as dificuldades de armazenamento e comercialização. Seja como for, no que toca as esses alimentos, Alagoas somente produz um quarto do que consome. Para piorar a situação, o rendimento por hectare dos dois produtos é uma dos mais baixos do país.
É importante sublinharmos que o consumo de milho que apresentamos na tabela (37.000 t) é o resultado da soma do consumo in natura do cereal, que é relativamente pequeno (6.420t), com o milho necessário para fabricar as toneladas consumidas de flocos e fubá de milho. Por não termos encontrados os dados necessários para o cálculo, deixamos de lado o milho necessário para suprir a avicultura alagoana, instalada principalmente nas cidades de União dos Palmares e Palmeira dos Índios. Contudo é relevante acrescentar que a Secretaria de Agricultura e Pesca do Estado de Alagoas estima em 50 mil toneladas o consumo total de milho. Como o feijão não costuma ser industrializado no Estado (e, mesmo no Brasil, a industrialização é insignificante), o consumo in natura coincide com consumo total.
No caso do arroz, há uma constatação positiva e uma negativa. Alagoas tem um rendimento por hectare muito mais alto do que os rendimentos do Nordeste e do Brasil e, por outro lado, produz apenas 27% do arroz que sua população consome. Não estamos levando em consideração o consumo industrial do arroz, principalmente aquele que é usado como matéria-prima pelo Grupo Coringa. É impressionante o fato de que o Estado que tem as melhores condições naturais para a cultura do arroz tenha que importar dois terços deste cereal de outras unidades da Federação.
Ainda na tabela 3, apresentamos o resultado do cálculo da área necessária a ser explorada com esses três produtos para que o consumo alagoano seja suprido pela produção local. Constatamos que a área necessária é maior que a área colhida existente. Os números são muito expressivos, principalmente no que se refere ao milho e ao feijão. A soma das áreas necessárias dos três produtos chega a 139 mil hectares; número que respalda bem a tese de que o suprimento local do consumo alagoano implica na diminuição significativa da área ocupada pela monocultura da cana-de-açúcar. O outro grupo de produtos considerados na tabela não precisa de áreas tão grandes, mas podem ser muito importantes para um projeto específico, como o que estamos planejando para as terras das antigas usinas AGRISA e PEIXA, já que têm um faturamento bastante significativo por hectare.
O caso da castanha de caju é, na realidade alagoana, muito particular e por isso merece ser tratado com mais detalhes. Observemos, inicialmente, que o rendimento por hectare da Leste Alagoano (1.250 kg/h) é três vezes maior do que o rendimento do Ceará (300kg/h), que é o maior produtor e exportador brasileiro. Segundo informações que obtivermos, a produtividade alagoana pode alcançar 2.000kg/h, ou mais, com facilidade. Se considerarmos o atual preço atual do quilo da castanha no mercado externo (4,4 U$) e a solidez da demanda do produto, chegamos à conclusão de que a exploração da castanha no Leste Alagoano seria um empreendimento bastante rentável e com potencialidade de ocupar produtivamente milhares de hectares.
Se fizermos um cálculo considerando o rendimento alagoano de hoje e o preço pago pela castanha no mercado internacional, o faturamento por hectare e a rentabilidade dessa lavoura seriam impressionantes, quando comparados com os outros produtos já mencionados, com exceção da uva. Pode-se objetar que o preço da castanha no mercado internacional não seria o mesmo pago ao agricultor, mas essa objeção deve ser respondida com a afirmação de que os próprios lavradores podem beneficiar a sua produção por meio de fábricas organizadas em regime de cooperativa. Como veremos detalhadamente adiante, a principal desvantagem da produção da castanha se relaciona com a possibilidade de reprodução da lógica da monocultura, o que poderia ser evitado por meio de um pacto entre o Estado e a sociedade civil em torno da administração racional dessa cultura.
Finalmente, a tabela 4 expõe os produtos básicos que são suficientemente supridos pela produção alagoana. Entre esses produtos, há aqueles que são explorados com o objetivo principal de suprir o mercado interno (mandioca, manga e batata-doce) e aqueles que são plantados e beneficiados para a exportação, ou seja, para outros Estados da Federação (laranja e banana) ou outros países (maracujá e abacaxi). O maracujá e o abacaxi são produzidos principalmente na Cooperativa Pindorama, localizada entre Coruripe e Penedo, e só uma pequena parte da sua produção deve chegar à mesa do alagoano. A laranja produzida em Alagoas tem o inconveniente de ser de uma única espécie (lima), enquanto nosso mercado demanda também outros tipos. Isso não ocorre, felizmente, no caso da banana, cujo consumo de todos os seus principais tipos é suprido pela produção local.
O consumo total da mandioca foi obtido, de modo análogo ao do milho, por meio da soma do seu consumo in natura e em forma de farinha. Isso se justifica porque o consumo in natura é tão pequeno em relação aquele em forma de farinha que, caso levássemos em conta apenas o primeiro, chegaríamos a uma representação bem distante da realidade. Em 2003, o consumo de mandioca foi de 8.490 toneladas e o de farinha de 33.702 toneladas. Considerando o aproveitamento atual de uma tonelada de mandioca quando beneficiada (250 kg de farinha), chegamos à conclusão de que o consumo da raiz e da farinha em 2003 demandou 134.808 toneladas de mandioca. Em contrapartida, foram produzidas nos mesmo ano 181.181 toneladas dessa raiz, o que dá uma sobra de 46.373 toneladas. Esses números demonstram que o Estado tem auto-suficiência no que se refere a esse produto e ainda exporta para outras unidades da Federação uma porcentagem significativa de sua produção.
A batata-doce, mesmo sem ter a enorme presença da mandioca, é plantada na microrregião da Mata Norte e a sua produção supre o mercado local de um dos alimentos mais típicos da culinária alagoana, principalmente nas cidades da zona rural do Leste Alagoano e do Agreste. Palmeira dos Índios e União dos Palmares produzem alguma manga em um esquema mais racional, o resto dos municípios parece aproveitar mangueiras esparsas, localizadas nos quintais e plantações de outros produtos. Isso implica no fato de que a qualidade do produto, bem como a sua variedade, deixa bastante a desejar.

2.3.3. Conclusões e Projeções
As tabelas comentadas trazem-nos dados capazes de levarmo-nos a conclusões muito relevantes sobre a questão do abastecimento em Alagoas e relativas às possibilidades dos novos assentamentos que serão implantadas nas terras das antigas usinas AGRISA e PEIXA. Uma primeira conclusão importante é a de que, se excetuarmos a área necessária para que a produção de arroz, feijão e milho supra o consumo alagoano, a área a ser ampliada para a produção local dos outros produtos da cesta básica ultrapassa pouco os 2 mil hectares, o que, a título de comparação, representa a mesma área ocupada por dez grandes fazendas canavieiras (de 240 hectares). Pela pouca área que precisam ocupar para satisfazer as necessidades dos alagoanos, a exploração desses produtos não requer o questionamento prático do modelo monocultor e latifundiário do Leste alagoano, embora implique numa denúncia teórica desse modelo; a sua não exploração nas dimensões necessárias relaciona-se a outras variáveis, como a inexistência em Alagoas de um aparato tecnológico que dê suporte a essas lavouras e à pequena dimensão do mercado de consumo alagoano, que faz os detentores de grandes capitais preferirem produzir cana, açúcar e álcool para os muito elásticos mercados internacionais desses produtos (além de pagarem em dólar). A situação é diferente quando levamos em conta o milho e o feijão, pois requerem grandes espaços para ampliarem suas áreas colhidas de maneira suficiente, os quais necessariamente seriam disputados à lavoura canavieira.
O quadro abaixo sumariza os números que embasam essas considerações. Pode-se perceber que a área para o arroz, o feijão e o milho abarca 98,50% da área que necessita ser implantada. Por outro lado, é fundamental sublinhar que a área necessária total, que é de 141.080,76 hectares, que seria localizada majoritariamente no Leste Alagoano, representa 33,6% da área ocupada atualmente pela lavoura canavieira. Outro aspecto muito relevante encontra-se no fato de que a área existente ocupada com lavouras voltadas para o mercado interno teria que ser aumenta 257% para suprir o consumo do Estado. Isso revela um grande atraso no desenvolvimento da divisão social do trabalho, que é uma das principais características do capitalismo periférico em Alagoas.


Quadro 1


É decisivo refletirmos sobre as condicionantes do preço (principalmente impostos, taxas, condições naturais e fretes) e sobre a origem dos produtos agropecuários importados pelo Estado (que releva o leque de concorrentes dos produtos plantados em solo alagoano), bem como detalharmos algumas características singulares do consumo local de produtos da cesta básica.

O alagoano está entre os brasileiros que consomem menos alimentos e as famílias do Estado ocupam o primeiro lugar entre aquelas que afirmam ter dificuldade de acesso aos alimentos necessários. O consumo per capita em Alagoas é 78,5 % do consumo paulista, 83,6% do consumo baiano e 76,4% do consumo brasileiro (POF/2003). Isso se explica pelas diferenças de renda média, de preço e qualidade dos produtos entre os Estados brasileiros. O alagoano tem menos dinheiro para gastar, o que freia o seu consumo de alimentos e de outros itens (apesar de a cesta básica alagoana está entre uma das mais baratas do Brasil; mas o que conta mesmo é a relação entre o preço desta cesta e a renda disponível para adquiri-la, ou seja, o decisivo é o poder de compra do consumidor e não o nível dos preços em si); por outro lado a baixa qualidade relativa de vários produtos que são importados de outros Estados (como as frutas tropicais e várias hortaliças), principalmente devida às longas distâncias que percorrem (as frutas precisam ser colhidas ainda muito verdes e as verduras acabam se machucando na viagem), poda o seu impulso de ampliar os gastos com alimentos em detrimento de outros.
Desse modo, para sermos rigorosos em nossos cálculos sobre a área a ser plantada, seria preciso levar em conta as possibilidades de aumento de consumo no curto e médio prazo. Esse aumento poderá ser causado pela expansão da renda dos pobres, principalmente via programas de transferência de recursos patrocinados pelo Governo Federal e pela diminuição do preço e melhoria da qualidade que uma produção local pode provocar. Na medida em que o menor consumo alagoano em relação ao brasileiro incide na grande maioria dos produtos alimentares, podemos projetar com alguma razoabilidade que a área necessária para suprir este aumento de consumo gira em torno de 25% da área necessária para suprir o consumo alagoano atual. Contudo esse cálculo precisa ser feito com mais vagar, em um momento posterior da reflexão sobre o assunto.
Não podemos subestimar o papel dos problemas da oferta no baixo consumo relativo do alagoano. Os produtos provenientes de outros Estados não enfrentam barreiras causadas por taxas e impostos (já que um dos componentes da famosa guerra fiscal entre os Estados brasileiros é a prática de quase todos isentarem seus produtos agrícolas de ICMS), mas os produtos não nordestinos, devido às grandes distâncias, têm incorporado aos seus preços um frete tão caro que inviabiliza a sua venda no Estado. Dependendo do caso, o frete pago por um agricultor paulista para transportar o seu produto para Alagoas encarece de 30 a 65% o preço final. Isso torna inviável a exportação para Alagoas da maior parte dos produtos agropecuários de Estados que estejam localizados em outras regiões do país. O problema principal é que o faturamento por tonelada da maioria desses produtos fica bem próximo do custo do frete por tonelada. Desse modo, o abastecimento de Alagoas só pode ser feito, essencialmente, pelos Estados de Pernambuco, Sergipe, Paraíba e Bahia. Portanto, do ponto de vista dos impostos, os produtores alagoanos não têm vantagens comparativas em relação aos produtores de outras unidades da Federação que desejem abastecer o mercado de Alagoas, a grande vantagem comparativa dos produtores alagoanos refere-se ao frete, seus produtos não incorporam os caríssimos fretes das viagens interestaduais.
Tudo isso nos leva a concluir, quando pensamos sobre as alternativas produtivas para as os assentamentos nas terras das antigas usinas AGRISA e PEIXA, que é viável projetar uma área plantada com o objetivo de aproveitar as vantagens comparativas da produção local (além do frete, temos a vantagem de precisar colher os produtos em períodos mais próximos de sua maturação, o que melhora muito a sua qualidade), contudo é necessário constatar que essa espécie de área não é extensa o suficiente para abarcar a maior parte da área disponível. Será necessário projetarmos uma área com esses mesmos produtos com o objetivo de disputar mercados no nível regional (principalmente os de Sergipe, Bahia, Pernambuco e Paraíba). E também será preciso ocupar uma parte da área com produtos de exportação alternativos à cana-de-açúcar. Essas áreas podem ser dividas em termos de risco, entre outras clivagens. A produção para o mercado alagoano tem o menor risco, enquanto que a produção para o mercado exterior tem o maior; mas isso pode ser diferente, dependendo dos produtos que forem exportados, já que existem mercados bem sólidos para determinados gêneros tropicais, como é o caso da castanha.
Na medida em que o conjunto das famílias assentadas teria direito a plantar em 13 mil dos 20 mil hectares desapropriados (os 7 mil hectares restantes constituiriam as áreas de preservação ambiental e reserva legal), chegamos à conclusão de que a área a ser ampliada para atingir o pleno suprimento local dos produtos alimentícios da cesta básica, com exceção do milho, do feijão e do arroz, poderia ocupar 2.500 hectares, que representa cerca de 20% da área disponível. Considerando parcelas que só explorassem esse tipo de produto, o que é apenas uma das possibilidades, essa área ocupada daria rendimentos líquidos médios de 1.200 reais por família. Contudo, das 2.000 famílias assentadas, somente 357 famílias estariam com os seus problemas de emprego e renda equacionados. Restariam ainda 1.643 famílias.
Essas famílias restantes, ocupando uma área de 10.500 h, sempre pressupondo que as parcelas explorassem uma única fatia de mercado, teriam que ser divididas entre aquelas que explorariam os produtos da cesta básica para competir no mercado regional e aquelas que explorariam produtos de exportação para outros países, principalmente a castanha de caju. A dimensão das áreas totais desses dois tipos de exploração somente pode ser calculada em outro momento de nossa reflexão sobre o tema, já que requer um tempo de pesquisa que não dispomos. Contudo, podemos salientar que a exploração de produtos para competir no mercado nordestino é viável, mesmo que mais arriscado que a exploração dos outros dois mercados mencionados. Mesmo com relativamente poucos investimentos, o rendimento do cajueiro é tão alto no Leste Alagoano, o mercado internacional é tão sólido e os concorrentes brasileiros têm rendimentos tão baixos que a exploração da castanha de caju nos assentamentos parece ser o melhor negócio possível, pelo menos em termos de renda líquida média por família. Por outro lado, mesmo sendo muito segura e rentável, a exploração da castanha para o mercado internacional tem o risco de promover a constituição de uma nova monocultura em parcelas significativas do Leste Alagoano. Contudo esse problema pode ser contornado por meio de um pacto entre as várias instâncias do Estado e da sociedade civil no sentido de administrar politicamente a exploração da castanha, com o objetivo de obrigar a sua produção a limitar-se a uma determinada área e a enquadrar-se em um modelo de agricultura social e ecologicamente sustentável.
Com base nos números das tabelas apresentadas no anexo, podemos perceber que a necessidade de introduzir uma área significativa de produtos de exportação para o mercado internacional, que implica no risco de construir uma nova monocultura, tem relação com o tamanho relativamente reduzido das parcelas que estarão disponíveis para cada família. Se essas parcelas tivessem o dobro de hectares, a maioria das famílias poderia plantar aqueles produtos que são a base da alimentação dos alagoanos (o milho, o arroz e o feijão) e cuja exploração é decisiva para constituir as bases da segurança alimentar e do desenvolvimento de uma agropecuária moderna, já que voltada essencialmente para o mercado interno e capaz de estabelecer uma densa rede entre a agricultura, a pecuária e o beneficiamento dos alimentos. A cadeia do milho é fundamental em qualquer sociedade contemporânea. A exploração suficiente de milho ativa a indústria de produtos alimentares, a avicultura e a suinocultura e, na seqüência, estimula o beneficiamento das carnes dessas duas atividades. Isso cria um círculo virtuoso entre produção de milho, aumento do valor agregado, da qualidade dos alimentos, dos empregos e da renda. Algo parecido ocorre com o arroz, que também é capaz de aumentar os empregos e provocar o surgimento de fábricas de beneficiamento e de produtos alimentícios derivados. O feijão, por sua vez, mesmo não tendo a possibilidade de ser usado como ração animal, tem um papel tão importante na alimentação do alagoano que qualquer melhoria no seu preço e ampliação da sua área colhida implica em grandes conseqüências positivas em termos de empregos e renda.
Seria importante mencionar que a três áreas de exploração referidas poderiam ser espalhadas em porcentagens em cada uma das parcelas, respeitando evidentemente os tipos de solo e outras condições naturais. Isso poderia aumentar a diversidade biológica das parcelas e nivelar os riscos e a renda de todas as famílias envolvidas no projeto. Outra medida importante seria o consórcio das culturas mais comerciais com as culturas mais usadas para o consumo da própria família, como o milho, o feijão e o arroz (o arroz somente seria viável nas várias parcelas que possuem área das várzeas dos vários rios da região de Joaquim Gomes, Flexeiras e São Luís do Quitunde). O excedente dessa produção de subsistência poderia ser comercializado, o que também faria aumentar a renda líquida da família. Por outro lado, devido à existência de vários pequenos rios perenes na região, a piscicultura poderia ser uma alternativa muito importante, principalmente devido ao fato de ser achatado o consumo de pescados em Alagoas pela grande deficiência na oferta de peixe e camarões frescos. Por fim, não podemos esquecer os vários recursos existentes nas áreas de proteção ambiental e reserva legal (sete mil hectares) que podem ser explorados de maneira sustentável, principalmente o mel e outros produtos silvestres.
Enfim, essas são as conclusões que pudemos chegar com os recursos e o tempo que dispomos.
1. Não é viável a constituição de uma cooperativa agroindustrial para produzir cana, açúcar e álcool nas terras das antigas usinas AGRISA e PEIXA, pelo menos no contexto no social, econômico e político no qual foram desapropriadas. Devido à pequena dimensão das parcelas, o baixo faturamento da cana por hectare e a rigidez da mão-de-obra provocada pela inadequação da forma cooperativa para uma usina ou uma destilaria, a constituição de uma cooperativa desse tipo repetiria os graves defeitos que se pode constatar na Cooperativa Harmonia (que administra a usina Catende) e significaria a construção de um verdadeiro “elefante branco”, com prejuízos para todas as partes envolvidas no projeto. A Cooperativa Pindorama, que ainda não moeu cinco safras, é sempre bom lembra isso, possui condições muito diferentes daquelas existentes na Cooperativa Harmonia e das que existiriam numa cooperativa sucroalcooleira constituída nas antigas usinas AGRISA e PEIXA. As principais diferenças encontram-se no tamanho dos lotes e na ausência de rigidez da mão-de-obra em Pindorama, além da sua sólida infra-estrutura constituída em décadas de apoio financeiro nacional e internacional a fundo perdido. Em Pindorama, os lotes possuem entre 20 e 30 hectares e a mão-de-obra é assalariada; isso significa uma renda líquida alta por lote e a não existência da rigidez de mão-de-obra no campo e na parte industrial. O modelo de Pindorama não se aplica às condições que existiriam numa cooperativa constituída antigas usinas AGRISA e PEIXA, pelo menos no contexto em que foram desapropriadas, ou seja, com um número de demandantes que impõe lotes de 7 hectares por família e, devido a isso, a impossibilidade de usar outros trabalhadores a não ser aqueles integrantes das próprias famílias assentadas, o que gera necessariamente a referida rigidez de mão-de-obra.
2. A melhor alternativa seria a constituição de várias cooperativas articuladas para explorarem o plantio, o beneficiamento e a venda de produtos agropecuários e de origem animal, com exceção da cana, do açúcar e do álcool (pelas razões expostas acima). Essas cooperativas poderiam ser divididas por produto, movimento social ou por fatia do mercado a ser explorada. Na medida em que cada faixa do mercado implicaria em riscos e rentabilidade diferentes, seria importante que cada parcela fosse composta por produtos destinados a mercados distintos, evitando que algumas famílias ficassem sobrecarregadas com determinados riscos e outras privilegiadas com uma renda mais alta. Essa verdadeira engenharia social implicaria em uma série de pactos decisivos entre as varias instâncias estatais, os movimentos que lutam pela reforma agrária e outros setores da sociedade civil preocupados com a resolução da questão agrária em Alagoas.

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