16.3.06

E. J. Hobsbawn – Um Olhar Moderado sobre o 'Século dos Extremos' (Golbery Lessa)

E. J. Hobsbawn – Um Olhar Moderado
sobre o 'Século dos Extremos'


por Golbery Lessa

Em quadras históricas como a que vivemos, marcadas pelo avanço da perspectiva e das práticas contra-revolucionárias, assiste-se ao quadro tragicômico da "conversão" de conhecidos intelectuais comunistas, ou seja, contempla-se a sua abjuração, aberta ou velada, dos princípios teóricos que fundamentam a propositura de revolução social.

Fruição para liberais e social-democratas, constrangimento para nós marxistas que resistimos às ondas de choque, essas "conversões" aparecem como prova irrefutável da inviabilidade teórica e prática do socialismo. Ninguém melhor do que parte significativa da vanguarda revolucionária, agora desiludida, para colocar, de acordo com o costume ocidental, os primeiros torrões de terra sobre a urna fúnebre do "velho" pensador alemão.

Os escritos desses novos poetas da ordem, como os papéis especulativos na bolsa, valorizam-se com uma rapidez vertiginosa, proliferam sob a proteção de inúmeras instâncias estatais, e passeiam lépidos, de mão em mão, ocultando a sua natureza precária. Tornam-se célebres não por acrescentarem um erro original ao pregão do proselitismo, mas por sua exemplaridade.

Apontar apenas para a fragilidade ética dos indivíduos "convertidos" eqüivale a abandonar o método dialético, o que também acontece quando se sublinha de modo exclusivo as fraquezas teóricas e o contexto sócio-cultural. É necessário, pois, como tem demonstrado a melhor análise marxista sobre a intelligentsia – tendo Lukács e Gramsci à frente – determinar em cada caso as relações dinâmicas e complexas entre a totalidade social e as possibilidades éticas e teóricas de cada indivíduo.

Os últimos anos da trajetória teórica do conhecido historiador inglês E. J. Hobsbawn vêm sendo marcados, segundo vários autores1, pelo seu paulatino e substancial afastamento em relação à propositura da revolução socialista. Apesar disso, essa metamorfose intelectual não tem sido, ao nosso ver, devidamente sublinhada pelos marxistas brasileiros. Obviamente, seria muito mais positivo se estivéssemos festejando grandes desenvolvimentos na historiografia revolucionária. Porém, não podemos fazê-lo, porque está dando-se justamente o contrário.

O melhor caminho não é calar-se diante do fato, mas tentar explicá-lo e agir no sentido de sua superação. Essa atitude se justifica ainda mais no momento presente, no qual as idéias do autor em questão, principalmente àquelas apresentadas em seu livro A Era dos Extremos, vêm tendo um sucesso considerável e sendo apresentadas pelo próprio e por muitos outros, como coerentes com o método e a perspectiva de Marx e como a quintessência do caminho teórico e político mais adequado.

O presente texto tem o intento de demonstrar a tese de que o historiador inglês abandonou, há alguns anos, a propositura da revolução social não por oportunismo ou qualquer outro defeito ético, mas fundamentalmente porque as suas bases teóricas e metodológicas nunca foram suficientemente coerentes com a sua posição revolucionária. Num certo momento de sua trajetória teórica, no seio de um determinado contexto histórico, essa antinomia finalmente se resolveu através da troca da revolução pela social-democracia e não do câmbio dos seus fundamentos teórico-metodológicos insuficientes pelo método marxiano. Esse desfecho não era uma necessidade inelutável, poderia ter-se dado o inverso com outro personagem ou com outras circunstâncias.

Acreditamos que essa tese se aplica à grande maioria dos ex-marxistas contemporâneos. Porém, a nossa proposta é ir além dessa determinação geral, que é imprescindível mas insuficiente. Tentaremos perceber as singularidades da trajetória de Hobsbawn e relacioná-las com àquelas determinações gerais que perpassam tanto o seu caso como o de inúmeros outros ex-revolucionários, tentando apreender a história do seu pensamento em sua particularidade.

I - As Aventuras de Asterix na Corte do rei Artur

O método historiográfico utilizado por Hobsbawn, em seu recente livro A Era dos Extremos, é essencialmente o mesmo de suas outras obras muito conhecidas e claramente se aproxima do método da chamada escola francesa dos annales, a qual teve como principais representantes Marc Bloc, Lucien Febvre e Ferdinad Brudel. A única diferença significativa reside no fato de que Hobsbawn, ao contrário desses três autores, não se exime de tematizar as questões relativas ao Estado e as intricadas lutas políticas em torno do poder.

A preocupação com a chamada "longa duração" é patente: as obras mais famosas do autor abarcam nada menos do que todos os aspectos – menos o filosófico, o que é sintomático – e todos os períodos daquilo que se convencionou chamar de modernidade, isto é, desde a Revolução Francesa até o presente. outros traços de inegável proximidade com os annales são um indisfarçado empirismo, o desprezo pela filosofia e uma fortíssima tendência a não aceitar a esfera das relações sociais de produção como momento predominante do ser social e de sua história.

Esses gauleses desejavam depurar a historiografia das suas conseqüências revolucionárias, porém com o cuidado de não caírem no factualismo. Por isso retiveram as noções de totalidade e da importância causal da economia de uma maneira extremamente esgarçada e impura, o que transubstanciou a totalidade em um conjunto de partes justapostas e que – sem perceberem claramente – se paralisam mutualmente e usurpou das relações sociais de produção o caráter de momento predominante dos outros complexos sociais2.

Uma totalidade sem momento predominante, em que as partes "interagem de maneira recíproca" de modo inteiramente equilibrado, apenas pode levar à imobilidade eterna, à uma equação de soma zero. Se tudo interage com tudo na mesma proporção, tudo anula as transformações de tudo. Se a religião muda para um lado, a economia para outro, a política para um terceiro etc., ou a sociedade se esfacela em vários pedaços, ou então as várias partes têm que abandonar a mudança e voltar para a situação inicial de harmonia.

Restou, então, para os annales buscar o impulso à mudança "de fora", do "exterior" das formações sociais estudadas. Assim, Marc Bloc inicia o seu Sociedade Feudal com as invasões dos nórdicos e magiares à Europa da "idade das trevas", recém saída do Império Romano. Sua história feudal será a história da síntese ente elementos romanos e bárbaros. O movimento foi encontrado finalmente, já que sem movimento não há inteligibilidade nem aparência de inteligibilidade possível. Outro recurso será a história comparada, que permite o movimento em nível "mental" provindo da "comparação" de uma sociedade com outra análoga, como no seu livro em que compara o campo francês com o inglês. A "longa duração" é, nessa escola, quase sempre, "extenso espaço", onde coexistem várias formações sociais, as quais entram em contato com o tempo, o que trás a idéia de movimento. O "mediterrâneo" é palco de inúmeras formações sociais, que entram em contato e choque ...

É claro que se trata de um mero truque: ou a contradição nasce do desequilíbrio, da desarmonia entre os complexos sociais ou não pode surgir do nada. A explicação sobre as contradições entre formações sociais não substitui a explicação sobre suas contradições internas, e essas determinam aquelas. Os bárbaros não invadiriam o império romano se esse não se fraturasse interiormente.

Os títulos das obras de Hobsbawn mais conhecidas e importantes demonstram por si a opção pela longa duração: A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios, Nações e Nacionalismo, A História Social do Jazz, Mundos do Trabalho, Os Rebeldes Primitivos etc.

Em Os Revolucionários e Políticas para uma Esquerda Racional, que reúnem inúmeras intervenções nos órgãos de imprensa, o autor analisa tempos curtos: conjunturas eleitorais, guerras localizadas, golpes de Estado etc. Nessas obras, fica patente um significativo empirismo. Sem a longa duração fica mais clara a insuficiência da análise. A dinâmica, nesse caso, é dada pela luta de classes, mas se resume a um olhar superficial, com forte tendência culturalista3.

Fazendo um balanço geral da obra do autor, pode-se notar que esse busca superar o economicismo típico da Segunda Internacional e do movimento estalinista. Porém, não há, por outro lado, uma superação positiva, através da compreensão profunda do complexo da economia e do seu caráter predominante. A tendência dominante do autor inglês é "afrouxar" a determinação econômica dos outros complexos sociais. A Filosofia é abandonada desde o início, o que impede completamente qualquer possibilidade de solução satisfatória. Trata-se de um processo particularmente perverso e amplamente conhecido: o afrouxamento dos princípios básicos se dá, necessariamente, em paralelo com a aquisição de conceitos de outras perspectivas.

O resultado, a "flexibilização" do pensamento do autor, aparece para ele mesmo – e para outros – como um ganho efetivo de capacidade de compreensão da realidade. Esse primeiro "ganho" de capacidade heurística estimula um novo "afrouxamento" e um novo "ganho" e, assim, sucessivamente, sem que a vítima perceba, uma bela manhã se descobre sentada à direita da rainha da Inglaterra!

A recorrência ao conceito de classe e de luta de classes não tiram o autor de suas dificuldades, dado que tais conceitos, no grau de determinação em que são utilizados, não são suficientes para estruturar uma compreensão dialética da realidade. O seu conceito de consciência de classe, por exemplo, é bastante empirista, o que vai contribuir para uma visão extremamente culturalista da história do movimento operário.

II - O Retorno Eterno ao 'Eterno Retorno'

O livro A Era dos Extremos teve uma acolhida extremamente favorável no Brasil. Tem sido vendido em verdadeiras pencas como genuíno Best-Seller. Trechos da obra passaram a ser citados como sentenças oraculares na academia, no Congresso Nacional, nos chamados movimentos sociais e mesmo na vida cotidiana por pessoas das mais díspares posições ideológicas e políticas.

Essa "unanimidade" relativa a um autor supostamente marxista nestes "tempos sem sol" teria que levantar desconfianças naqueles que ainda "pensam por si mesmos", o que não se deu na dimensão que esperávamos. A análise desse livro tem a potencialidade de revelar muito sobre a história intelectual do seu autor, principalmente porque é nele que a referida antinomia entre método e posição política se resolve. Além disso, pode concorrer para "dessacralizar" o conjunto de suas teses verdadeiramente medíocres relativas à história do século XX.

O livro comporta todos os problemas metodológicos das obras anteriores do autor. Ao nosso ver, o seu sucesso reside nas conclusões pífias e reformistas que resultam do desenvolvimento conseqüente do método utilizado e na pretensão de explicar todos os aspectos do século XX num único livro, o que se harmonizou facilmente com o gosto da reacionária e mentalmente apressada opinião pública contemporânea. O sucesso de público e de crítica do livro se originou, contraditoriamente, no fracasso teórico do autor, na sua incapacidade de compreender o século XX. Resultou do fato de que Hobsbawn se enredou no labirinto da aparência e produziu uma visão reificada que se adequou perfeitamente ao senso comum deste final de século.

Poderíamos demonstrar as fragilidades teóricas do livro e a grande distância em que o seu método se encontra do método marxiano a partir de algumas das inúmeras questões tratadas ao longo do texto, como por exemplo,

1) as causas e as conseqüências dos grandes massacres do século XX;

2) a conceituação do movimento fascista;

3) a relação entre o desenvolvimento econômico do século XX e os seus outros complexos sociais;

4) o mundo das artes neste século;

5) as modificações no mundo do trabalho nas duas últimas décadas;

6) a relação entre o público e o privado etc. Porém, ateremo-nos à primeira questão, não só pelas dimensões do presente texto, mas também porque acreditamos que é o suficiente para os nossos objetivos.

O capítulo 1 do livro de Hobsbawn, intitulado A Era da Guerra Total, no qual ele analisa as duas grandes guerras mundiais, é fundamental para compreendermos o pensamento do autor no que se refere às causas e as conseqüências dos massacres do século XX.

Ao longo das trinta páginas do capítulo referido, o autor fica muito longe de cumprir o que promete, ou seja, não consegue explicar satisfatoriamente porque aconteceram as duas guerras mundiais, porque esses conflitos se diferenciaram dos anteriores, e quais foram as conseqüências históricas advindas deles. Isso ocorre essencialmente pelo profundo empirismo utilizado na análise dos fatos, que é de tal ordem que dificulta inclusive, para quem ler, a identificação das "teses" e da "teoria" que está sendo explicitada no texto. O leitor é obrigado a investir-se da função de arqueólogo e separar com muito esforço, após vários esquadrinhamentos, a "terra fatual" dos pequeninos "artefatos teóricos" minimamente significativos.

Para se ter uma idéia do vazio conceptual basta sublinhar o fato de que a palavra "capitalismo" aparece uma única vez, na penúltima das trinta páginas do capítulo, assim mesmo numa alusão ao que será tratado numa próxima seção do livro. Certamente, trata-se de uma façanha inédita: explicar as duas grandes guerras interimperialistas sem utilizar o conceito essencial para entender a sociedade na qual se deram.

Quem procurar ler o referido capítulo notará que Hobsbawn procura explicar o aumento da dimensão dos massacres no século XX a partir da disseminação de uma cultura da violência e do desprezo à vida dos outros seres humanos, essa cultura teria sido gerada antes de tudo pela Primeira Guerra Mundial, a qual teria acostumado a população européia, por um lado, a ser indiferente aos imensos banhos de sangue e, por outro, a ser tão firmemente pacifista que não se dispunha a enfrentar atentados violentos à própria civilidade, e criou uma massa de veteranos de guerra prontos para guiar os seus povos a renovadas hecatombes. Uma das principais causas da reprodução desse "imaginário" da indiferença e da brutalidade foi a invenção de meios assépticos e impessoais de matar, como o bombardeiro e o rifle de longo alcance, os quais facilitariam a aceitação da violência a partir de desenvolverem a impessoalidade na guerra. Além disso também contribuiu muito o caráter "popular" dessas guerras, que obrigou os líderes políticos a mobilizarem a massa através da demonização dos seus inimigos. As novas gerações teriam apreendido esse "imaginário" com as antigas e passado adiante ...

Salta aos olhos do leitor o fato de que o historiador inglês procura dar uma explicação basicamente culturalista para o aumento nas dimensões dos massacres. O complexo da economia sempre aparece ao lado ou subordinado às esferas da subjetividade e da política, e quando aparece como determinante é de uma maneira vaga e esquemática.

Assim, por exemplo, o autor explica a amplitude e radicalidade da Grande Guerra – que desencadearia toda a "cultura da brutalidade" – pelo fato de que os interesses econômicos e políticos das grandes potências imperialistas eram radicalmente excludentes. É interessante sublinhar que, nessa tentativa de explicar o "motor inicial" da Grande Guerra e, consequentemente, da queda do grau de civilidade no século XX, a "economia" e a "política" aparecem fundidas numa identidade completa – "Na Era Imperialista a política e a economia se haviam fundido" –, o que demonstra mais uma vez a recusa do autor inglês a perceber o complexo da economia como momento preponderante da totalidade social. A verdadeira "causa primeira" da Grande Guerra aparece como se fosse a rivalidade "geo-histórica" das potências européias, o "movimento", como na escola dos annales, é encontrado no "extenso espaço" e não na natureza particular da economia dos países beligerantes.

Isso fica novamente patente quando o autor procura explicar as principais causas da Segunda Guerra: "Talvez a guerra seguinte (a Segunda Guerra) pudesse ter sido evitada, ou pelo menos adiada se houvesse restaurado a economia pré-guerra como um sistema global de prósperos crescimento e expansão econômicos. Contudo, após uns poucos anos, em meados da década de 1920, nos quais se pareceu ter deixado para trás a guerra e perturbação pós-guerra, a economia mundial mergulhou na mais drástica crise que conheceu desde a Revolução Industrial. E isso levou ao poder, na Alemanha e no Japão as forças políticas do militarismo e da extrema direita".

O historiador não faz nenhuma menção às profundas diferenças entre o capitalismo clássico da França, Inglaterra e Estados Unidos e o capitalismo retardatário da Alemanha, Japão e Itália, diferenciação que deveria ser base do entendimento das causas da guerra, já que foi o caráter retardatário das "Potências do Eixo" que explica tanto a possibilidade dos fascistas chegarem ao poder como a inevitabilidade do conflito. Para Hobsbawn, todo o mal-entendido poderia ter sido evitado se a economia mundial não tivesse entrado em crise. O que demonstra mais uma vez a sua maneira esquemática de entender a relação entre a economia e os demais complexos sociais. O autor fica impossibilitado de perceber que a única maneira de evitar a guerra teria sido a vitória do movimento revolucionário nos países de capitalismo retardatário, principalmente na Alemanha, vitória que era uma possibilidade real e que foi perdida por inúmeros erros político-ideológicos.

A "causa primeira" do aparecimento da "cultura da brutalidade" teria sido, para o autor, a Primeira Guerra Mundial, e esse acontecimento teria sido determinado por um contexto geo-histórico que contrapôs de maneira radical os interesses políticos e econômicos das grandes potências européias. Ou seja, para Hobsbawn, no início de todo processo esteve presente interesses econômicos e políticos muito objetivos, mesmo igualando o complexo da economia ao complexo da política como esfera predominante, isto é, mesmo fundindo relações econômicas e relações políticas num mesmo todo indiferenciado, o historiador parte do que com alguma boa vontade poderíamos chamar de "plano da objetividade".

Porém, se esse "plano da objetividade" produz o movimento subjetivo "ampliação da cultura da brutalidade", esse mesmo "plano da objetividade" não está presente, segundo o texto do autor, na "reprodução" do referido movimento subjetivo. O complexo da cultura se autonomiza e passa a se autoalimentar e reproduzir, apartando-se completamente de seu produtor "plano da objetividade". A autonomia absoluta da cultura não fica ainda mais patente porque o autor faz o "plano da objetividade" intervir mais uma vez através de mais outro acontecimento econômico-político: a Segunda Guerra Mundial. Com mais essa alavanca "objetiva" a autonomia absoluta da cultura aparece menos claramente e se torna mais aceitável, mas de nenhuma forma é efetivamente diminuída ou superada.

Por fim, após esse percurso que fomos obrigados a trilhar no interior do texto de Hobsbawn, explicitaremos, sem ir muito além dos próprios dados fornecidos pelo autor, mas procurando utilizar o método dialético, qual deveria ser a explicação adequada do aumento da amplitude dos massacres no século XX e a sua relação com as duas grandes guerras mundiais.

A escala "industrial" das guerras e de outros massacres perpetrados no século XX devem ser explicados pela radical complexificação, integração e concentração das economias capitalistas. Em economias com essas características, os danos causados aos inimigos em qualquer embate bélico são, necessariamente, astronômicos se comparados ao passado em termos absolutos. Antes da radical urbanização e industrialização, quando as economias dos beligerantes eram essencialmente agrícolas e pouco integradas, as guerras – sejam na Europa ou em qualquer outra parte do mundo minimamente desenvolvida – tinham que ser decididas principalmente entre os militares, buscava-se apenas causar um dano decisivo no exército ou na esquadra adversária.

Por outro lado, é importante perceber que esses danos – essencialmente militares, mas não apenas – se eram pequenos se comprados aos atuais, para aquelas sociedades não o eram. Não havia parques industriais, entroncamentos ferroviários, aeroportos, centros administrativos-comerciais nevrálgicos param serem destruídos, nem uma população urbana suficientemente concentrada a partir da qual se poderia destruir parte significativa da força de trabalho e também espalhar o pânico, o desespero e a desorganização. Antes das primeiras décadas do século XX, não havia inclusive os meios bélicos capazes de destruir em grande escala, os quais obviamente apenas se tornaram possíveis com o desenvolvimento industrial.

Diante da inevitabilidade da guerra de massas e, consequentemente, das grandes carnificinas, os indivíduos que viveram e vivem durante o século XX foram obrigados a adaptar o seu espírito a essa realidade, construíram estruturas psicológicas – conscientes e inconscientes – e morais que, se indiscutivelmente são em grande parte estranhadas, possibilitam a sobrevivência em situações radicalmente desumanas e desestruturantes. Por outro lado, os inúmeros progressos materiais trazidos pelo século XX possibilitam o desenvolvimento positivo de muitas dimensões da subjetividade, como por exemplo, a liberação da mulher, a chamada "revolução sexual", o arrefecimento da religiosidade etc.

A ampliação da "cultura da brutalidade" se deu paralelamente à ampliação da "cultura da humanização". A coexistência dessas duas culturas contraditórias expressa, certamente, a coexistência de condições e possibilidades econômicas também contraditórias.

A intensificação da socialização do homem, "o recuo das barreiras naturais" – processo sublinhado por Marx e Lukács – é necessariamente contraditório. O progresso histórico sempre coexiste e implica em muitos momentos de regressão. E mais: a própria potencialização do progresso implica a intensificação das possibilidade do regresso. Isso não significa que exista efetivamente a "lei do eterno retorno" na história humana, que não possamos visualizar uma escala de progresso significativa – mesmo que não linear – se compararmos os diversos modos de produção. Se levarmos em conta as dimensões históricas mais universais do gênero humano – a saber: o trabalho, a socialidade, a universalidade, a consciência e a liberdade –, teremos a possibilidade de perceber, por exemplo, que a sociedade capitalista possui um grau superior de progresso, de desenvolvimento dessas dimensões fundamentais, ao da sociedade medieval. Isso não significa que essa superioridade geral do capitalismo não possa, por si mesma, tornar alguns dos aspectos desse mesmo modo de produção mais desumanos, mais regressivos, do que os aspectos análogos no feudalismo. Assim, por exemplo, a capacidade produtiva na sociedade burguesa é infinitamente superior a da sociedade feudal, o que implica numa diferença muito grande na qualidade de vida, longevidade etc., porém, por outro lado, implica também numa grande diferença no que se refere à autodestruição: a feudalidade era incapaz de destruir todo o gênero humano, a sociedade regida pelo capital adquiriu as condições de realizar essa possibilidade inominável.

O pessimismo de Hobsbawn, que perpassa não apenas o primeiro capítulo, mas todo o seu livro, surge do fato de que o autor é incapaz de entender esse complexo movimento contraditório que envolve o progresso e o regresso, e fez uma opção emocional – não fundamentada – pelo ceticismo (anteriormente, a referida incompreensão convivia com uma opção também emocional pelo otimismo).

Como já afirmamos, o culturalismo presente nesse livro perpassa todas as obras mais conhecidas do autor. Porém, é apenas a partir desse trabalho que tal perspectiva teórico-metodológica leva Hobsbawn a conclusões anti-humanistas e anti-socialistas. A convicção socialista do autor tinha como base um arcabouço teórico-metodológico incompatível com essa mesma convicção. A derrocada do "socialismo real', o refluxo do movimento operário nos anos oitenta e as substanciais modificações societárias desse fim de século, colocaram abaixo o seu edifício comunista carente de um alicerce comunista.

III - Os Belos Veleiros Vitorianos

O historiador inglês repete, como já assinalamos, na sua extensa carreira, os mesmos erros cometidos pela escola do annales e por muitos outros que não foram capazes de entender o método dialético, ou seja, aparta a história da filosofia e se recusa a perceber as relações sociais de produção como momento predominante no complexo social. Interdita, assim, a possibilidade de ir à raiz da realidade social. Navega o oceano científico com a intrepidez de um belo veleiro vitoriano, mas naufraga completamente. Os extremos de progresso e regresso e a luta extremada entre o capital e o trabalho que marcaram o século XX, requerem, para serem compreendidos, um olhar extremado, radical, o qual somente tem a possibilidade de possuir quem escolhe o lado do progresso e do trabalho. Nenhum pretenso termo-médio, nenhum tipo de olhar moderado é suficiente. Caso houvesse compreendido algum dia a maneira teoricamente adequada de traduzir as possibilidades cognitivas postas pelo trabalho, Hobsbawn hoje não seria um espécie de tradutor da "linguagem" das mercadorias, não teria uma opinião tão desesperançada sobre o gênero humano e certamente poderia adotar como divisa de seu veleiro vitoriano os seguintes versos de Hamlet: "que obra-prima é o homem! Como é nobre pela razão! Como é infinito em faculdade! Em forma e movimentos, como é expressivo e maravilhoso!"


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1 - Ver, por exemplo, o norte-americano Vicente Navarro e o húngaro I. Mészàros. As opiniões do primeiro podem ser encontradas num texto sobre o Welfare State publicado na revista Lua Nova (n° 24), as observações críticas do segundo foram proferidas no Colóquio sobre Lukács, realizado em Maceió, Alagoas, em outubro de 1996.

2 - No que se refere às principais características da chamada "escola dos annales" seguimos de perto as formulações do livro Á História em Migalhas, de F. Dossé, Ensaio, 1994, SP. Acrescentamos apenas uma maior ênfase na demonstração das diferenças entre o método dessa escola e o método marxiano.

3 - Esse culturalismo é baseado numa interpretação subjetivista de Gramsci; a consciência de classe é confundida com o imaginário popular referente às lutas entre as classes, principalmente no seu aspecto político. Não se percebe, como Lênin percebeu, que a consciência de classe dos trabalhadores é a elaboração científica feita pelos intelectuais revolucionários das condições objetivas da massa trabalhadora e de seus interesses históricos, e não a média das intuições individuais dos trabalhadores.


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Caro Leitor, esperamos que a leitura deste artigo, pertencente à Revista Práxis número 10, Outubro de 1997, tenha sido proveitosa e agradável.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o artigo. Infelizmente demorei para começa a conhecer o Golbery. Mas agora é correr atrás do tempo perdido !

um abraço !

Anônimo disse...

intiresno muito, obrigado