14.3.06

Federalismo e Cultura (Golbery Lessa)


Análise do documento Carta Visões da Cultura (São Paulo, 9 de setembro de 2003), elaborado pelo movimento “Visões da Cultura: um diálogo da sociedade civil sobre Políticas Culturais para o Brasil”

por Golbery Lessa

Introdução

Após uma análise detida, percebemos que o documento em foco expressa a perspectiva atualmente hegemônica na sociedade civil brasileira no que se refere ao Estado e às políticas públicas, particularmente às políticas de cultura. Esta perspectiva, como qualquer outro ponto de vista, demonstra ser capaz de desvelar determinados aspectos do real e, por outro lado, fechar a possibilidade da percepção de outros aspectos igualmente importantes. A nossa análise terá alcançado o seu objetivo se conseguir um equilíbrio na apresentação dos pontos do texto que iluminam e dos pontos que encobrem o melhor caminho para a compreensão e a redefinição das políticas culturais contemporâneas. Por outro lado temos também a intenção de apresentar as linhas gerais de um caminho alternativo, caminho que por certo revelará também a sua particularidade, mas que diferentemente da perspectiva criticada, não esconderá o seu ângulo específico e procurará acercar-se do ângulo que mais abertura tenha para os interesses universais, que no caso são os interesses da nação brasileira e dos seus estratos sociais oprimidos do ponto de vista social e cultural.
No texto em análise há uma desconfiança no Estado e em seus agentes que são diretamente responsáveis pela formulação, avaliação e execução das políticas públicas: os burocratas e os políticos profissionais, principalmente aqueles que se encontram no nível federal; bem como fica clara uma crítica severa (mesmo que implícita) aos mecanismos da democracia representativa em contraste com a defesa aberta dos instrumentos próprios da democracia direta. Na medida em que o diagnóstico implícito é o de que os problemas se originam na não participação da sociedade civil e na não percepção do mercado (moderado pelos cidadãos e pelo Estado) como meio essencial de regular o universo cultural, a sociedade civil e o mercado surgem como as principais soluções dos problemas existentes. Essas duas instituições são apresentadas então como os melhores agentes para o planejamento e a execução das políticas públicas de cultura; o Estado é visto como um problema e como um sócio menor que pode cumprir um certo papel se for devidamente submetido à hegemonia das duas outras instâncias; essas duas instâncias também são pensadas em uma hierarquia: o mercado somente funciona, apenas se torna um “mercado livre”, se subordinado à sociedade civil.
A sociedade civil é vista como a parte organizada e politicamente consciente da população, que se expressa geralmente nos movimentos sociais e nas ONG’s; o mercado é concebido de uma maneira pouco realista, como uma entidade social que pode ser “livre” e culturalmente positivo (um mercado de pequenos e médios produtores de cultura, um mercado sem monopólios) por meio da fiscalização dos cidadãos e da ação de grandes capitalistas, os quais são percebidos como aqueles que inconscientemente provocam o desenvolvimento cultural ao buscarem a defesa dos seus interessas mais egoístas (a valorização de suas empresas e de suas marcas).
É curioso percebermos como essas idéias, presentes no documento e na sociedade civil, são impulsionadas por um meio intelectual muito influenciado por duas tradições teoricamente opostas: a pensamento neoliberal e a perspectiva pós-moderna. Neoliberais e pós-modernos desconfiam do Estado e recorrem à sociedade civil para, no caso dos primeiros, barrar a presumida irracionalidade da burocracia, e, para os últimos, impedir as presumidas conseqüências perversas das metanarrativas produzidas por vários agentes e colocadas em prática principalmente pelo Estado. Naturalmente a sociedade civil que ambos reivindicam como solução não é percebida da mesma forma; os neoliberais chamam as grandes corporações para organizar a sociedade ao mesmo tempo em que fazem a apologia do livre mercado (que pressupõe a inexistência de monopólios), enquanto os pós-modernos defendem a miríade de novos movimentos sociais surgidos nas últimas três décadas e desconfiam de qualquer tentativa de unificação desses sujeitos políticos.
A clássica posição que defende um Estado democrático e republicano (que tem relação íntima com o liberalismo democrático, a social democracia e com o marxismo não stalinista) saiu muito fragilizada do confronto com as duas tradições assinaladas no parágrafo anterior, principalmente devido ao fim da União Soviética e à emergência de uma série de novos sujeitos sociais que não foram reconhecidos tempestivamente pelas organizações políticas existentes. Diante dessa trajetória e também do atual cansaço teórico e político com o neoliberalismo e com o pós-modernismo, a questão que se impõem, para aqueles que desejam avançar na percepção da contemporaneidade, é saber quais foram os benefícios e os limites que esse clima contrário ao Estado, mesmo ao Estado mais democrático e republicano, ajudou a estabelecer nos últimos vinte anos. A análise do texto em foco remete diretamente a essa questão e ele não pode ser, em nossa opinião, percebido em toda sua complexidade se não for colocado nesse quadro mais amplo de questões.

1. Centralização Excessiva e a Lei Rouanet

Se for verdade, como afirmam os clássicos das ciências sociais brasileiras, que o Estado brasileiro tem sido incapaz de unificar democraticamente a sociedade em torno de um projeto nacional, as idéias propostas no texto em análise têm a potencialidade de radicalizar essa dificuldade e não de contribuir para resolvê-la. Prevalecendo as idéias do texto, qual a instância social evitará a fragmentação da sociedade civil em múltiplos interesses? Não basta lutar contra a centralização excessiva, é igualmente importante pugnar contra a descentralização exagerada, que se transforma em fragmentação e fortalece as tendências mais arcaicas presentes na sociedade brasileira. Basta pensarmos nos problemas que o federalismo brasileiro coloca pra as políticas culturais. Como as ONG’s conseguirão coordenar satisfatoriamente uma discussão entre Estados da Federação sobre produção cultural? Ou seja, como articularão um debate delicado sobre a hegemonia ideológica e cultural na nação brasileira. Como forças particularistas coordenarão forças particularistas? Principalmente em um momento em que ocorreram tantas mudanças no peso específico dos Estados da Federação nos campos da economia e da política? Cada ONG e movimento social representa geralmente um pequeno grupo, defende um interesse muito específico ou então interesses difusos e é incapaz de articular amplas tendências sociais; por outro lado a sua articulação em redes, que foi a grande esperança nos anos noventa, não garante um unidade orgânica e , em conseqüência, não possibilita uma prática política eficaz. O Fórum Social Mundial e o movimento antiglobalização vêm deixando explícita a necessidade de unificação dos vários movimentos sociais de uma maneira que vá além das redes, que vá além da justaposição das diferenças num todo inorgânico e incoerente.
O documento não contesta em nenhum momento a Lei Rounet, que é o principal mecanismo responsável pela tendência de centralização percebida nas políticas culturais brasileiras; ao contrário, o texto não faz qualquer crítica a essa legislação e nem àquelas legislações estaduais e municipais que repetem os seus princípios. A centralização é criticada principalmente quando se encontra no Estado, notadamente no âmbito da União, ou então quando se relaciona com a centralização dos recursos em uma forma de expressão cultural e em uma região do país; todo o discurso de descentralização e democratização dobra os joelhos diante de uma lei que remete para os grandes capitalistas e as grandes empresas públicas (que tendem a funcionar, em muitos aspectos, de maneira capitalista) o direito de financiar por meio de incentivos fiscais as políticas de cultura, o que significa propor, consciente ou inconscientemente, que os grandes monopólios determinem a política cultural brasileira. Todos os mecanismos de participação propostos no documento são frágeis diante da realidade de que a decisão do investimento ficará com as grandes empresas. Naturalmente o mesmo não ocorre em relação aos recursos do Fundo Nacional de Cultura, já que estes estão regulados por instâncias estatais, que são obviamente mais permeáveis, mas esses recursos não são o núcleo do atual esquema de financiamento da esfera cultural.
Fica evidente, quando percebemos os interesses que estão por trás das teses apresentadas, que a sociedade civil que vocaliza suas idéias no documento não representa uma síntese do país, mas apenas a sua parte inserida nos pólos culturalmente hegemônicos, os quais se localizam no Sudeste, principalmente no Rio e em São Paulo. Um discurso aparentemente contemporâneo acaba por servir para que setores hegemônicos da sociedade civil desses pólos privilegiados mantenham uma posição de poder não legítima, uma posição que se baseia na união entre jogo duro do mercado monopolista no campo da cultura e as práticas patrimonialistas. Como ocorre com freqüência, o discurso se apresenta como o contrário dos interesses que defende e justifica.

2. Um discurso moderno e pós-moderno funcional para o arcaico

Estamos assim diante de um fenômeno curioso: um discurso que se apresenta com a síntese entre a democracia direta, o desprezo pelo Estado e a negação do capitalismo monopolista termina sendo funcional para garantir a ausência de mecanismos eficazes de democracia direta e representativa, a prevalência de um Estado com políticas de cultura não democráticas e o domínio das grandes corporações sobre a produção cultural. Como isso é possível? Antes de tudo, e dando como conhecido os fenômenos próprios do universo da ideologia, não devemos esquecer que uma das principais características da sociedade brasileira é que nela o velho instrumentaliza o novo para se perpetuar. Isso ocorre muito claramente no caso em análise.
Em nossa perspectiva o problema fundamental das políticas culturais no Brasil reside no fato de que elas não têm uma instância de coordenação e decisão no nível nacional (tendência que se reproduz nos Estados e Municípios); ou seja, a União não foi legitimada como núcleo de síntese e arbitramento dos vários interesses regionais e setoriais ligados à cultura. Assim cada Estado da Federação tem suas próprias políticas ou entrega essas políticas a setores poderosos da sociedade civil local; isso fragmenta as políticas culturais e mata de inanição orçamentária o Ministério da Cultura, órgão que deveria ser a instância suprema de coordenação dos recursos e arbitramento dos conflitos. Dessa situação surge o domínio do mais forte e a desorganização dos esforços do país na área; as sinergias são desperdiçadas, os recursos são gastos sem racionalidade e sem o arbitramento adequado, as relações se transformam em um vale-tudo, em um verdadeiro estado de natureza descrito por Hobbes. Para se ter uma idéia mais concreta do que significa isso para a cultura brasileira, basta pensar, por exemplo, quais seriam as conseqüências de uma desorganização desse tipo nos campos da saúde e da educação; como seria o SUS se o Ministério da Saúde tivesse menos recurso orçamentários do que algumas secretarias estaduais?
É claro que esta situação não impede uma certa estabilização na desorganização e um domínio dos pólos politicamente mais fortes; porém mesmo os vencedores acabam perdendo uma série de vantagens que uma situação de pleno republicanismo e federalismo proporcionaria. Isto é, o problema essencial não é a centralização, mas a maneira como esta centralização ocorre; o problema não é a presença do Estado mas a sua ausência. O poder não fica com a União, não fica com o Ministério da Cultura, mas sim com setores mais influentes da sociedade civil e dos Estados da Federação.
O discurso que sintetiza a posição neoliberal e a posição pós-moderna, portanto, vai no sentido contrário daquele que seria necessário para resolver os problemas das políticas de cultura. O enfraquecimento do papel da União, a percepção que tudo que sair de suas mãos estará a salvo de problemas, o exagero nas críticas à democracia representativa , a apologia da democracia direta e do mercado radicalizam os problemas existentes e encobrem uma série de posições ilegítimas de poder. Por exemplo, o discurso contra o estado e contra a União, feito por representantes da sociedade civil do Rio e de São Paulo, tende a encobrir o fato de que esses dois Estados da Federação têm uma posição hegemônica na produção cultural brasileira, hegemonia em grande parte ilegítima, porque não é baseada na competição em igualdade de condições. O Rio domina a produção de novelas, e tem financiamento público para isso por meio da ajuda que o governo federal aporta para garantir o equilíbrio financeiro da Rede Globo; São Paulo domina o campo Universitário e também tem apoio federal para isso. O pós-moderno discurso da descentralização acaba sendo instrumentalizado para produzir a centralização da produção em pólos de hegemonia cultural de uma maneira não legítima; partindo de setores do sudeste, marcados por uma hegemonia cultural muito prenunciada, essa crítica à centralização acaba sendo uma figura de retórica, uma mediação lógica do raciocínio e não um desejo político; o que se comprova com a ausência de críticas ao centralismo provocado pela lei Rouanet.

Nenhum comentário: