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15.3.06

As Bantas Coisas de Alagoas (Bruno César)


Gazeta de Alagoas - Caderno Saber

05/11/2005
As Bantas Coisas de Alagoas - culturas negras, passado e presente
Às comemorações da saga palmarina acrescentemos um olhar na dinâmica das culturas afro-alagoanas de hoje, e outro nas trajetórias que as fizeram como são
Bruno César Cavalcanti
Mais um novembro de merecidas comemorações nacionais à consciência negra. Em Alagoas, deveríamos acrescentar uma necessária atualização: a de que fomos e continuamos a ser um território marcadamente afro-brasileiro. Esta poderia ser uma espécie de contrapartida do presente à saga palmarina do passado. Ao menos em Maceió, em certa medida continuamos cegos e ignorando a cidade negra sobre este chão, e diante dos nossos olhos. Temos grande escassez de estudos sobre diferentes características da afro-brasilidade e insistimos, por isso mesmo, em não reconhecer a imensa força simbólica de tal pertencimento cultural. Na verdade, nos habituamos a envolver muita coisa sob o pano enganoso do folclore; quando disso se faz apenas o discurso da pretensa herança "comum" do "povo" ou da "alma alagoana". Vistos assim, muitos elementos étnicos que nos formam perdem a identificação de suas matrizes, empobrecendo a compreensão sobre nós mesmos.O fato é que há uma África específica que nos habita desde aqueles primeiros navios do atlântico negro, nos meados do século XVI. Esta é, em grande medida, uma África dos povos de tronco lingüístico banto (ou bantu), e que está em nossas palavras, em nossas "gingas" e "mogangas"; rasteiras e umbigadas de tantas capoeiras, sambas e batuques. Em nossos fazeres, saberes e sabores diários que degustamos na ignorância de sabê-los negros, africanos, alagoanos, afro-alagoanos. Por isso, leitor, quando pronunciar "gunga" você estará falando da praia alagoana, mas, provavelmente sem o saber, estará também se referindo a "berimbau pequeno". Se disser "mutange" ou "cambona" estará falando banto; e se der de ombros ou apontar com o queixo ou beiço, se dançar um samba de roda, se improvisar o "passo" num frevo rasgado, ou jogar uma capoeira de Angola, se utilizar a quase totalidade de nossas expressões informais para a sexualidade, mas, também ainda, quando se dobrar ante a força de um Preto Velho num terreiro Umbanda ou "Xambá" - linha de culto afro-brasileiro de influências banto e cabocla - saiba, você estará exercendo seu lado "banto". O português praticado em Alagoas é de tal forma marcado pela presença banta que Rodolfo Garcia, em seu Dicionário de Brasileirismos, não hesitou em afirmar que por aqui esta influência foi maior que aquela herdada dos ameríndios. Mas não somente assim estão presentes as inúmeras referências bantas em Alagoas e no Brasil.Dos povos bantu herdamos valores morais, espirituais, religiosos, estéticos, sociais e políticos, técnicas corporais, tecnologias agrícolas, comportamentos coletivos associativistas, modelos de organização familiar e outros. E é por isso que o africano não contribuiu com a cultura brasileira, pois quem contribui o faz "de fora"; ele a constituiu, isto é, a elaborou "por dentro".O termo bantu deriva de "ba-ntu" , plural de mu-ntu (pessoa, indivíduo), e se refere a uma imensa família etno-linguística da qual descendia o maior contingente de escravos trazidos para o Brasil, aqui chamados angolas, cambindas, congos, benguelas, moçambiques, entre outras denominações. Foram negros bantos provenientes, sobretudo, dos atuais territórios de Angola, falantes do quicongo, do quimbundo e do umbundo, entre outras línguas; da República Democrática do Congo (Congo-Kinshasa, ex-Zaire) e da República Popular do Congo (Congo-Brazzaville), falantes do quimbundo e do quicongo, entre outras, que constituíram a força de trabalho africana espalhada inicialmente na costa brasileira, entre os séculos XVI e XIX, formando a quase totalidade dos negros cativos em Alagoas. Os rebeldes de Palmares, por exemplo, eram seguramente bantos, em sua maioria e talvez mesmo em sua totalidade.Os bantos formaram uma civilização capital no processo de povoamento do continente africano. Acredita-se que ali a expansão humana ocorreu do Norte para o Sul, ou seja do Egito à África do Sul. Os agrupamentos mais antigos também se estabeleceram na região abaixo do Saara, a Noroeste. E deste ponto partiram os bantos e os chamados sudaneses. Enquanto os sudaneses permaneceram na rota Oeste-Leste, até o atual Sudão oriental, estacionando acima da linha do Equador, os povos bantu espalharam-se rumo ao Sul, sendo hoje encontrados majoritariamente tanto na África ocidental quanto oriental.As influências lingüísticas do tronco bantu localizam-se, quer em línguas preponderantes quer minoritárias, nos seguintes países africanos: Camarões, Guiné Equatorial (parte do Gabão), Angola, Congo-Kinshasa (República Democrática do Congo), Congo-Brazzaville (República Popular do Congo), Ruanda, Burundi, Uganda, Quênia, Tanzânia, Zâmbia, Botsuana, Namíbia, Moçambique e África do Sul. São milhões de bantos falantes de mais de 450 línguas de um mesmo tronco lingüístico!Para o Brasil, as maiores contribuições vieram das línguas quimbundo, umbundo e quicongo, grandemente incorporadas no português que falamos. No nosso país, e ao contrário do que se passara na costa africana, não tivemos a formação de uma língua de contato, uma língua geral entre africanos e portugueses, como o crioulo, tamanha esta influência de línguas bantos no falar brasileiro. Apesar desta forte presença, os negros bantus sofreram imenso preconceito no Brasil, e não apenas do homem comum, mas de intelectuais do porte de Caio Prado Junior, Sílvio Romero, Afrânio Peixoto, Manuel Diegues Jr., e até mesmo de militantes negros como Édison Carneiro. Via de regra, foram vistos como mais "atrasados", ou como mais "submissos" que outras etnias africanas aqui aportadas pela escravidão. Portanto, não foram apenas os negros bantos os escravos trazidos para o Brasil. Em menor volume, e provavelmente apenas na fase final do escravismo (fins do século XVIII e primeira metade do XIX) aqui chegaram os chamados sudaneses - por referência ao antigo Sudão, reino que compreendia desde o atual Sudão oriental até a costa ocidental, no atuais Benin, Senegal e Nigéria. Dos sudaneses os escravos chamados "malês" eram islamizados, sendo os demais chamados genericamente nagôs, sobretudo dos grupos jeje-mina e nagô-iorubá, e nos trouxeram a religião dos orixás, tal como a conhecemos hoje pelos nomes de Xangô, Candomblé, Tambor de Mina e outras denominações. Os malês se tornaram famosos por suas revoltas urbanas na Bahia, com uma pequena presença em Alagoas; já os demais são, até hoje, reconhecidos na linguagem litúrgica dos cultos e nalguns termos incorporados ao português brasileiro. Muito provavelmente, para estes sudaneses foi vantajoso permanecerem freqüentemente nas cidades brasileiras, e em particular em Salvador. Com o "feitor ausente", obtiveram condições mais favoráveis à rebelião e/ou preservação da língua e das crenças. Para os bantos, restou uma presença mais "invisível" e mais antiga, mas muito mais dilatada em diferentes domínios: a língua portuguesa do Brasil, as artes culinárias, corporais, musicais, os bailados e danças dramáticas brasileiras.ManifestaçõesEstando em Alagoas por muito tempo no espaço rural, na Zona da Mata dos engenhos de açúcar, o negro escravizado possibilitou (tirei o termo para") que hoje Alagoas seja tomada como um celeiro de manifestações folclóricas, em particular nas músicas e danças, como os pagodes -não confundir com o pagodão paulista - e os sambas, outros nomes dos cocos alagoanos, inúmeros como dança e canto, segundo ensina Aloisio Vilela: coco topado, remado, travessão, cavalo manco, trupé repartido, o sete e meio, o xipapá, o falado, o dobrado, o tranquiado, o de entrega, o de roda, o de "pareia", o coco solto, etc. Invenções rítmicas, coreográficas da cultura popular de Alagoas que, como se sabe, resultaram de um contexto - nos sentidos social, psicológico, político e cultural - muito específico, o da escravidão; e depois o do mandonismo senhorial de compadrio, esta forma de relacionamento bastante conhecida, às vezes adocicada na pena romântica da crônica condescendente dos resenhistas de nossas origens. Diegues Jr. lembra, a propósito, que manifestações como o coco seriam produtos gestados pelos empregados das fazendas, mas para uso coletivo nos pátios, isto é, uma produção cultural de mediação social, uma criação "para fora", para todos. Deste modo também, ao que parece, muitas características estéticas foram misturadas às formas lusitanas (ou ibéricas) e ameríndias de folguedos e festejos. Assim, não se deve esperar que as referências afro-brasileiras sejam apenas aquelas nítida e claramente reconhecíveis como "africanas". Foram dessas realidades negociadas a partir das fazendas e engenhos alagoanos que brotaram formas culturais ambivalentes ou ambíguas quanto ao reconhecimento social dos teores de negro-alagoanidades que as preenchem. Isso transparece com nitidez no chamado "folclore negro", que para Alagoas os estudos de Abelardo Duarte listaram: as danças do coco alagoano, do buá, do bate coxa, e ainda do lundu; as músicas do esquenta-mulher e dos barbeiros; a literatura oral negra do ciclo do Pai João, das cantigas de ninar e dos adágios populares; a escultura, como a estatuária fantástica, radicalmente distinta da européia; as profissões "de ganho", como os vendedores ambulantes e as baianas quituteiras da velha Maceió, no centro e em Jaraguá, lembradas por Félix Lima Jr; e os folguedos populares, hoje mais ou menos vivos e mais ou menos mortos, como o Bumba-meu-Boi, o Reisado, o Guerreiro, as desaparecidas Taiêras, as Baianas, o Quilombo, e o finado Maracatú. Ora, se essa influência está assim disseminada, "hibridizada" ou "sincretizada" na forma "afro-brasileira" ou "afro-alagoana", o esforço de conhecê-la (ou reconhecê-la) é aquele de evitar que sejamos, por exemplo e por ignorância, racistas de nós mesmos. Também é preciso considerar este processo de fusão de referências como estando em pleno vigor, o que evita o congelamento dessas referências no tempo e no espaço. Somos bantos sim, pelas centenas de gestos e expressões corporais, de grupos de capoeiras e bandas afro, pelos instrumentos musicais, pelos brincantes de folguedos, pela maneira com que professamos, aberta ou veladamente, crenças mágico-religiosas. E por falar em religião, foi do sistema de crenças banto, aliás, que veio boa parte dos elementos que integram os cultos umbandistas. E foi como religião sincrética que o Xangô (ou Candomblé) ressurgiu com força em nossa cidade, desde os anos duros do início do século XX. Não sem razão o nosso Candomblé tem se autodenominado de "traçado", isto é misturado de nagô com umbanda, de orixás, inquices e caboclos. Xangô com Umbanda, como se diz, por força das linhas bantas ditas "de Angola".O elogio a este processo sutil de misturas culturais deve soar como um signo da vitória da cultura sobre a raça, como uma fórmula a evitar que a mestiçagem seja lida como mera ideologia do recalque, mas, bem ao contrário, que represente a exata medida de nossa auto-referência. Isto em vez de restringir alargaria a definição do ser alagoano, quanto à cultura que se supunha sob este rótulo existir, mas também quanto à composição social desse mesmo ser.###AngolafobiaPor que é importante retomar esses laços afro-alagoanos?Não fosse para gerar informação e atualização seria, ainda, para não pararmos nas generalidades sabidas, de gostos senhoriais e ainda tão vivos mesmo que extemporâneos, e que em salões ou colunas de jornais a tudo dilui numa confraternização sem fim da "gente alagoana". É necessário retornar às pistas sugeridas nos poucos autores locais que se debruçaram sobre as afro-alagoanidades (à frente de todos, Abelardo Duarte), dispersas ou ofuscadas pela característica violência de nossa formação social. Foram séculos de ignorância, ironia e preconceitos, que obliteraram a clareza e obviedade do nosso cotidiano real, sem as mistificações discursivas, literárias ou outras. A vida real desta gente crescida no sururu, no mungunzá e no pé-de-moleque.Quais seriam, então, os mais reais representantes desta África escondida em nós? Seriam quilombolas, papa-méis e, hoje, cata-papéis. Porque a pobreza herdou os negros alagoanos, e deu uma cor escura à pele da miséria. Esta gente apelidada de povo, mas, contudo, sempre exibida num corpo desossado como um polvo.Insistimos em falar da Nega Jujú, uma imagem bem nossa e bela, mas, olhando direitinho, uma negra imaginária, uma "negra maluca" criada nos anos da era Vargas, naquela pequena, pacata e provinciana Maceió. Tudo bem, a Nega Jujú é mesmo um de nossos patrimônios imateriais. Ora, mais importante e mais real, patrimônio esquecido, foi a Marcelina; porque negra real de terreiro, negra de Xangô, que apanhou com o pau do ódio às coisas de África, essa lembrança que se quis apagar com uma sova na gente crédula de seu passado. Foi numa Alagoas - e numa Maceió - senhorial, violenta, e branca em sua vontade de negar-se a si mesma, que se calaram todos os que tinham voz ante o massacre das casas de cultos afro-brasileiros. E o pau cantou, deitou e rolou naquela noite de 1 de fevereiro de 1912. Eis aí uma data que ainda nada diz para quem dela poderia fazer a lei de seu reconhecimento e de sua memória social. Assim como o 20 de novembro, data nacional, por que não esta data local sobre a mesma causa? Ou continuaremos calados?Calados ficaram todos os homens de voz daqueles anos duros e intolerantes: poetas, acadêmicos, políticos, jornalistas. Neste caso, poder-se-ia dizer, a riqueza herdou os envergonhados "homens bons", ditos de boa cepa ou "de família". Não deixa de ser sintomático sobre a eficácia desta violência - chamada também de "operação Xangô" - e do silêncio que produziu, o fato de que já em 1935, quando lança o seu livro Folk-Lore Negro do Brasil, Arthur Ramos ainda se referir ao massacre de 1912 como "batidas policiais", quando hoje sabemos ter sido uma ação coletiva civil e de oposição ao governo de então. Foi justamente por não se tratar de ações policiais, corriqueiras em todo o país, que o "quebra de 1912" é acontecimento único de intolerância religiosa no Brasil. Um vexame histórico, uma vergonha secular da terra da liberdade! A partir de 1912, algumas coisas parecem ter mudado para sempre. Maracatú (palavra banto)? Nem pensar nisso por aqui. Não, isso já seria, então, demais; pois o indisfarçável Xangô ou Candomblé (palavra banto) estava contido nessa gente de Maracatú. Melhor seria, e na prática o foi, trocá-lo por fórmulas mais brandas e católicas. Que tal uma igreja se fazendo chapéu? Mil vezes a Calunga se querendo santa. Ficou tão esquecido e ofuscado entre nós o Maracatú que Abelardo Duarte conta que por ocasião da IV Semana Nacional de Folclore de 1951, que se passou em Maceió, Théo Brandão quis organizar um grupo deste folguedo mas desistiu, pois "não havia jeito das "Baianas" do Maracatú dançarem no ritmo conhecido; só dançavam no ritmo das Baianas."Tire-se, então, os batuques e umbigadas de tão bantas feições. Coloque-se em seu lugar algum passo quebrado dito mais folclórico, pincelado de lusitanismos e indianismos. Enfim, nada de tanta Angola em Alagoas. Uma agonia ou uma angolia? Angolofobia. Aliás, e a propósito, angola era como os portugueses se refeririam ao Reino de Dongo, e vem o termo do banto Ngola , ou "o divino".E se poderia ler sossegadamente o belo poema erudito: "que medo danado de negro fujão". A poesia negra? Só se for na versão erudita. Lembranças do rio Congo? Só se for na poesia de Raul Bopp.Congo, antigo reino banto aonde, à foz do rio de mesmo nome, chegou a expedição portuguesa de Diogo Cão em 1482, reino que de tão grande deu quatro novas nações africanas. Do Congo nem as congadas, correntes no Brasil, foram para nós atrativas. Na porta de nossas igrejas, nada, ou quase nada, dessas bantas "bagunças". Nada de tambores, nada de tão real e negra presença de África. Era um medo danado. Manuel Diegues Jr., no seu "O Bangüê (palavra banto) das Alagoas", insuflado pela pena de Alfredo Brandão deste repete o argumento do catolicismo dos escravos daqui, que assim "não se deram à prática de cerimônias religiosas próprias". Por isso, facilmente exterminamos os Maracatús - na verdade, poderíamos aceitá-los, desde que como uma folclórica e caricatural "Nega da Costa"; pois até mesmo como Taiêras deixamos morrer. O mestre Félix, lá de Jaraguá, do Xangô e do Maracatú, naquela velha Maceió humilhada desapareceu das ruas. Quem quiser, no entanto, poderá encontrá-lo nos jornais dos anos 1930, brincando novamente o Carnaval, mas com adequado folguedo lusitano!Ao horror dos Palmares, impregnado em séculos de senzalas bem seguras e de negros bem aprisionados, acrescentemos essas nossas maldades tardias: primeiro, aquela da Cabanada e seus negros "Papa-méis"; depois, de modo exemplarmente alagoano, a maldade do quebra-quebra de 1912. Quando veio este massacre dos terreiros, fizemos até festa sobre os pertences sagrados daquela gente (hoje, coleção Perseverança do Xangô alagoano, no IGHAL); humilhando por décadas a fé alheia, e impondo-lhes ou o total silêncio ou o Xangô "rezado" baixo, como ficou conhecido.Por último, enforcamos o derradeiro rebelde negro do escravismo no Pilar, à margem do mesmo Mundaú que corria também logo ali abaixo da Serra da Barriga (mais uma vez o poeta Jorge de Lima, em Serra da Barriga: "Mundaú te lambeu, Mundaú te lambeu"). E assim fechamos por último, e com "chaves de ouro", o capítulo brasileiro do pânico à negritude altiva ou rebelde. E depois? Bom, sempre esquecemos de dizermos negras até as lembranças recentes de um Moleque Namorador ou de um "Ras Gonguila", brincantes maiores do Carnaval; às vezes até da recentíssima Joana Gajurú, e de tantos outros personagens já agora bem esquecidos por nossa cegueira histórica.
Bruno César CavalcantiProfessor de Antropologia e pesquisador do Laboratório da Cidade e do Contemporâneo (LACC) do Departamento de Ciências Sociais da UFAL.Juntamente com a Profª Rachel Rocha, realiza a pesquisa Mapeamento Cultural Afro-brasileiro de Maceió, LACC/Afro-Atitude/Universidaids MEC/MS/UFAL.

Um Carnaval se faz com homens e litros! (Bruno César)


Saber

04/02/2006
Um Carnaval se faz com homens e litros!
Ou o que tornou possível a glória dos velhos festejos de Momo em Maceió

por Bruno César Cavalcanti*
Durante décadas, um bordão publicitário radiofônico lembrava que "se no Recife tem...". Na verdade, nós, alagoanos e, particularmente, maceioenses, crescemos sem o menor constrangimento em confessar uma tendência para imitar a cultura urbana do Recife. Isso nos pareceu sempre algo legítimo, por termos uma origem comum aos pernambucanos; e, notadamente, por não nos ter custado maiores sacrifícios a emancipação política, o que não nos remeteu à criação de uma identidade cultural reativa para com os vizinhos - como o é todo processo identitário. Por isso gostamos deles e de muitas de suas características culturais que, estamos convencidos, são igualmente nossas.Disso sabia muito bem, ao que parece, o velho marqueteiro da Casa do Colegial!Entre os elementos que poderiam ser elencados para demonstrar esse vínculo histórico com o Leão do Norte está sem dúvida a festa do carnaval, o 'carro-chefe' desse dispositivo local. Que o digam nos dias de hoje as Pecinhas, A Seresta da Pitanguinha e o Pinto da Madrugada, mas também aquelas agremiações, de há muito extintas, como Vassourinhas, Lenhadores, Abanadores, ou maracatus como o Cambinda de Ouro, que tomaram parte nos carnavais maceioenses do início do século XX, mas já se encontrando todos de "fogo morto" quando por aqui chegou o frevo nos últimos anos da década de 1920. De toda a área de influência do frevo de Pernambuco foi Alagoas aquela mais aderente e "fervente". Aqui, na terra do coco-de-roda, tivemos tamanho envolvimento com essa modalidade de festa carnavalesca, treinados que estávamos com as danças dos pés, que criamos o destaque para o passista solo, inventamos campeonatos animadíssimos de "passo", e tivemos grandes campeões; a ponto de Théo Brandão querer acreditar que tínhamos, inclusive, gestado uma forma particular de "fazer o passo", que seria algo assim... mais... "quebrado", feito um coco. E jamais duvidaríamos de sermos, os alagoanos e maceioenses, gente legítima do frevo. Em meados dos anos 1930, quando o Major Bonifácio da Silveira sugeria suas glosas para que os leitores construíssem versos, e com eles concorressem a prêmios da imprensa e do comércio, disparou ele certa vez: "segure o passo quebrado, no compasso de amargar!"Tudo indicava que a nossa imitação do carnaval recifense seria tão eficaz e duradoura que não mais necessitaríamos continuar a vida inteira a viver de prévias carnavalescas, e não mais viajaríamos os cerca de 300 km para viver aquela cocanha festiva das cidades de Olinda e do Recife; aquela festa que o antropólogo Roger Bastide viu como sendo um "barroco de rua", tamanha a sua riqueza e diversidade cultural. E contudo, hoje se busca inventar diferentes mecanismos de atração para envolver o povo no entusiasmo necessário às coreografias arrojadas do "passo"; e mesmo oferecem-se até pequenos cursos e oficinas para re-introduzir nos nativos o gosto daquelas pernadas ao vento. O que terá ocorrido? Por que acabamos sucumbindo? O fato é que o carnaval de rua de Maceió se tornou o que é hoje: socialmente segmentado, exclusivo, de uma efêmera empolgação que não resiste a nada mais que uma prévia para a classe média maceioense lembrar a data com polidez e estilo, com hora marcada e espaços bem delimitados. Isso significa afirmar que apesar do trabalho tremendo dos que apostam na continuidade da brincadeira carnavalesca, sejam "seresteiros", "pintos", "filhinhos", "pecinhas", ou "rolinhas", todos, isolados, não fazem verão! E dado ao atual estado crítico em que agonizam os resistentes, e outrora tão impávidos e gloriosos, blocos populares "históricos", incluindo-se o "Cavaleiro dos Montes", o "Sai da Frente" e outros, não resta muito mais a dizer acerca das limitações que se mantém estruturantes sobre o esquálido carnaval maceioense.Assim, não conseguimos reeditar os bons tempos do carnaval relativamente ampliado que o passado assistiu nessa cidade de tão altos contrastes sociais. Para tentar organizar uma discussão em torno do carnaval de Maceió e seu passado, umas perguntinhas: gostaríamos mesmo de reeditá-los, os mitificados "velhos carnavais"? Por que nossa imitação não mais consegue arrebatar aquela capacidade de realizar uma festa participativa e de massa? Por que nossa imitação, hoje em dia, é tão socialmente segmentada? E, por fim, e dito de um outro modo, que especificidades sociológicas inviabilizam que tenhamos um carnaval popular como outrora? Como veremos, a resposta para este dilema já foi dada pelo velho e bom Major Bonifácio da Silveira, e desde quando realizávamos ainda os primeiros carnavais de rua verdadeiramente participativos, no início da longínqua década de 1930.###É da "da pontinha"... é "de amargar!" A chegada do frevo do Recife se dá ao mesmo tempo em que Maceió começa a ter um carnaval de massa, diferentemente da antiga ocupação momesca do Centro quando ali ainda residia parte da elite socioeconômica. A cidade crescia a olhos vistos, urbanizava-se, ganhava melhores serviços de iluminação e transporte, via surgirem inúmeros grêmios ou associações artísticas e literárias, cresciam ambientes de convivialidade e boemia, diversificava-se e especializava-se o comércio de gêneros importados e exclusivos às ocasiões dos vários ciclos festivos. A velha cidade, há 100 anos atrás, não tinha mais que 5 desses 50 bairros de hoje: Levada, Farol, Bebedouro e os então distritos do Poço e de Jaraguá. E o aparecimento de uma massa urbana expressiva passa a ocorrer somente quando, a partir dos anos 1920, começa a efetiva ocupação residencial de áreas que se tornariam bairros denominados por Ponta Grossa, Pontal da Barra, Pajuçara - mas também, e na seqüência, Prado, Ponta da Terra, Cambona, Mutange, Trapiche, o então chamado Alto do Urubu etc. Este processo começa a repercutir no carnaval de Maceió logo no começo da década de 1930, com a formação de clubes e blocos carnavalescos de grande popularidade e que fariam história na cidade. Dentre esses inúmeros blocos, clubes e troças estavam os rivais Vou Botar Fora e Cavaleiros dos Montes, ambos aparecidos em 1932. Já no carnaval do ano seguinte, o Jornal A Notícia comentava assim sobre o Vou Botar Fora: "um espetáculo interessante [...] é a saída de um blococarnavalesco. Mulheres, crianças, velhos e moços, ricos e pobres, gazeteiros e estudantes, uma doida coordenação carnavalesca, vivendo aquela hora de uma alegriaincompreensível...é "Vou Botar Fora" , club de todo mundo".A idéia de que vivíamos certo apogeu festivo, de gosto cívico até, aparecia também na nova safra de composições próprias desse entusiasmado carnaval, que não deixavam dúvidas sobre onde morava a festa:"...Em Bebedouro, no Farol, na Ponta Grossacom o Sururu da Nega a folia é nossa...O bom problema é o sururu lá da Levada...". ***Porém nem sempre estiveram as organizações populares a serviço de tal alegria criativa, espontânea e massiva. Muito antes dessa fase do carnaval no Centro de Maceió, agremiações como os famosos "Morcegos" da Levada (ao qual estiveram vinculados muitos dos integrantes da autodenominada Liga dos Republicanos Combatentes, que comandou o massacre dos terreiros de Xangô de Maceió em fevereiro de 1912); mas eram sociedades carnavalescas que primavam pelo luxo dos veludos, em desfiles bem organizados com garbo e gosto de tons civilizatórios, com o fito de arrebatar dividendos de civilidade e de aceitação social ante aquela tão pequena e, por vezes, frívola burguesia.Ainda à época, a música dos chamados Zé Pereira era originária de antigas quadrilhas, e os ritmos outros que insistiam em circular na cidade, como os maracatus, eram muito mal recepcionados seja pela imprensa seja por outros formadores de opinião e pessoas de prestígio e poder. A música de carnaval executada por essas agremiações, então, era bem mais apta para os anseios dos cortejos mais ordeiros e elegantes que ao confusional e circular ambiente gerado pelas orquestras de metais das bandas de frevo que apareceriam nas décadas seguintes, endiabrando as multidões com seus encontros de blocos, seus frevos "de encontro" ou "de abafa", suas rivalidades e as paixões torrenciais dos frevantes por suas agremiações, despertando amor pelos estandartes e cores dos blocos e clubes.Ante certa luxúria incentivada pelos "carnavais da civilização" dos anos anteriores, o modelo ao qual adeririam as populações crescidas na pobreza agora anônima dos novos arrabaldes da cidade era aquele constituído pelos brincantes marginais do antigo entrudo, bem lembrados por Luis Veras em seu "Carnavais Adormecidos", pela gente acostumada com as bandas de pífanos e com os vários folguedos, povo das mascaradas toscas ou primitivas, e dos entremeios lúdicos como o nosso resistente e heróico Boi de Carnaval, até então muito pouco à vontade na área nobre da cidade que pretendia jogar um carnaval de flores à moda de Nice e de outras praças famosas do mundo de "carnaval civilizado".Os desfiles de agremiações à base das estrondosas orquestras de frevo, ao que parecem, favoreceram o desenvolvimento de multidões aglutinadas na função de "fazer o passo" seguindo os blocos, marchando para a grande aglomeração da área central da cidade, vindas de todos os lados, e notadamente da Ponta Grossa, criando pólos de folia ou ainda pulando alucinadas em torno das bandas distribuídas em palanques, na extensão que ia da Praça dos Martírios ao ponto onde se ergueria o edifício do antigo Produban.Era também o tempo, também, da circulação cada vez mais acessível de diferentes marcas de produtos exclusivos para a festa carnavalesca, e entre esses o combustível inebriante do lança-perfume. Juntamente com o capital do comércio de fantasias, de tecidos e dos demais adereços carnavalescos, a indústria dos lança-perfumes promovia e esquentava o ambiente momesco, patrocinava, publicizava e endossava o carnaval da velha Maceió. Quem se debruçar sobre os jornais diários do período carnavalesco nas décadas de 1930 ou 1940 verá a força participativa da propaganda e do comércio do lança-perfume, a atenção dispensada a este produto pelos colunistas carnavalescos. O mesmo se poderia dizer dos refrigerantes e das bebidas, muitas das quais de fabricação local. Portanto, foi quando todas essas condições estiveram reunidas que o frevo, sua música e sua dança - com mais tudo aquilo que de coreográfico e rítmico lhe habita a ambiência festiva, como os maracatus, os caboclinhos, as la ursas, os grupos de bobos e outros - se tornaram a forma preferida da brincadeira dos maceioenses nos velhos carnavais populares. Eram os bons tempos da folia nos bairros com fluidez automática à área central de Maceió. Foi a época do já idoso Major Bonifácio da Silveira, da juventude do Moleque Namorador e do Ras Gonguila, além da emblemática e insuperável criação da Nega Jujú na famosa composição "Sururu da Nega" de Pedro Nunes e Aristóbulo Cardoso em 1934.Coincidentemente, o major Bonifácio da Silveira era recifense, nascido em 1867, tendo vindo residir em Maceió juntamente com os pais, onde se estabeleceram como comerciantes na atual avenida Moreira Lima. Republicano e abolicionista militante, ocupou a Intendência de Maceió em 1892, por indicação de Gabino Besouro. Foi Tenente Honorário do Exército Nacional, segundo decreto de Floriano Peixoto, e Major da Guarda Nacional e do Tiro Alagoano; tendo ainda sido nomeado em 1915 Comandante da Polícia, na gestão do governador Clodoaldo da Fonseca. No tempo que lhe restava organizava inicialmente diversas brincadeiras, como a curiosa "cavalhada de bicicletas", no bairro de Bebedouro e, depois, na Praça Floriano Peixoto (dos Martírios), notadamente por ocasião do Natal, do São João e, claro, do Carnaval. Foi ator, no teatro e no cinema (veja-se "Casamento é negócio?"), mas ficou para a posteridade como produtor cultural de festejos populares e o nosso maior mediador social. A ele se devem os esforços que tornaram possível no seu tempo tantas realizações festivas na cidade, tendo aquelas de Bebedouro alcançado o status de atração turística para os visitantes de Maceió. A qualidade de suas iniciativas, e o apelo que exerciam sobre a cidade podem ser notados quando, por exemplo, o Jornal de Alagoas, em sua edição de 9/1/1932, informava: "quase toda a população festeira da cidade esteve lá". O major também comandava, seguidamente e por indicação do governo municipal, a organização do carnaval, como ocorreu com mais freqüência nos anos 1930. Na verdade, desde a década anterior que a sua notoriedade se acentuara nessa função, sendo inclusive proclamado, em 1927, "Presidente Perpétuo da República da Alegria". De cavalhadas a quadrilhas juninas, passando pela formação e apoio logístico de grupos de folguedos e da participação pessoal em concursos como o banho de mar à fantasia, de tudo fez o Bonifácio da Silveira até a idade proibi-lo.###Major, Moleque, Gonguila: heróis da foliaA função mediadora do Major Bonifácio jamais encontrou correspondente, e o carnaval começou a definhar após sua morte; dada a sua capacidade mobilizadora e a sua paixão pessoal pelas festas. De tanto gostar das festanças coletivas, ele muitas vezes encerrava os festejos natalinos por volta de 10 de janeiro e, não raro, fazia neste último dia um pequeno corso carnavalesco, como que sinalizando o novo espírito a ganhar corpo dali para frente no calendário da pequena cidade. Sendo o maior deles na arte da mediação social provocada pelo fluxo festivo entre elementos de diferentes classes sociais, o Major não estava só. Da altura de sua importância como nosso grande memorialista, Félix Lima Jr. descreveu os antigos carnavais da "Maceió de outrora" daquela primeira metade do século passado nos deixando maravilhosas pistas sobre importantes momentos da nossa festa pública que possibilitaram a fusão de classes sociais. E foi, em nossa opinião, justamente a não manutenção desse agenciamento interativo dos segmentos sociais que fez malograr as conquistas do passado em matéria de cultura carnavalesca. O próprio major Bonifácio previra as dificuldades que se apresentavam na constituição da sociedade maceioense, ao propor a seguinte glosa nos jornais, durante o carnaval de 1932:Segurem esses ricaçosEles querem fugir...Quando o carnaval começa,Querem todos escapulir.***Félix Lima Jr., além de descrever as lojas, os seus proprietários e os produtos importados, as atrações do comércio para o carnaval de cada ano, apontou para outros foliões mediadores que aderiram à festa pública e de rua na velha cidade. Ele cita o Major João Lobo, da então Casa de Detenção, que organizava no início do século XX o "Club dos Feras"; o Chico Barbeiro com suas fantasias absurdas; o Dr. Luiz Mesquita disfarçado de "Pai João", irreconhecível; o mascarado que escondia o Coronel Jacinto Paes Pinto, "respeitável figura da alta sociedade e inspetor do Tesouro do Estado"; o Sr. Antídio Vieira, que chegou inclusive a ser Rei Momo, que se vestia de mulher e "que preferia sair pela noite com leque chinez, duas ou três anáguas bem engomadas, cabeleira postiça". Lembra também o Sr. Floriano Peixoto Tavares de Figueiredo, que "fazia sucesso fantasiado de Barão de Vandesmet, todo de branco, barba Pedro II, apoiando-se numa bengala e arrastando a perna direita"; outra figura lembrada por ele foi o Sr. Olimpio Passos, sempre vestido de viúva negra; e, por fim, referiu-se também a essa figura das mais presentes no carnaval das ruas do centro da velha Maceió que foi o Professor Agnelo Marques Barbosa, "vestido de Almocreve, montado num burro cor de rato, com grandes caçuás". O professor Agnelo, mesmo já bastante idoso era presença constante nos banhos de mar à fantasia, onde saia, entre outras, fantasiado de índio. Muitos outros nomes comporiam nas brincadeiras de rua de Maceió, como Ezequiel Pereira, Jose Moreira Lima, Arthur Machado, João Alves de Souza, Abel Ribeiro, Aristides Carteiro, Mario Cardoso, Saleiro Pitão e muitos outros foliões, de clubes e de rua, que chegaram ativos até os últimos anos da velha folia, alguns ainda bem vivos para contar o que foram esses carnavais.Isso não quer dizer que as distinções estivessem abolidas, bem ao contrário. É sabido, por exemplo, que a rua Boa Vista esteve no front da resistência da popularização do carnaval do Centro de Maceió, por tratar-se da artéria que mais tempo manteve-se como local de moradia de certa elite comercial da cidade. As moças da rua Boa Vista, por exemplo, nos tempos do Major, gostavam elas mesmas de realizar a decoração daquela via pública. Anos depois, com a expansão de Maceió, algo semelhante ocorreria no bairro de Jaraguá e na recente Pajuçara, fazendo o nosso cronista se referir à "jeunesse dorée" daquela área. Esses fidalgos, aliás, parecem que inaugurariam o hábito de partir da cidade nos dias de Momo, onde se brincava, já então, na semana anterior ao carnaval propriamente. Diegues Jr., por exemplo, que desfilava num daqueles blocos da "juventude dourada" da Pajuçara, As Marselhesas, confessaria mais tarde que já então rumava para o Recife no carnaval!O mesmo Félix Lima Jr. também descreveu a participação popular nas festividades do Centro de Maceió, com seus tipos amparados nos folguedos, através dos anônimos "máscaras", ursos, Mateus de reisado, fantasiados de "morte", de diabos, de "índios", bois de carnaval, dos primeiros bonecos gigantes, além de pequenos comerciantes ambulantes de limões de cheiro, futuramente substituídos pelo comércio industrializado dos lança-perfumes. Tudo isso viu o cronista em suas andanças pelas ruas de Maceió em dias festivos. E quanto mais os anos passavam mais o frevo penetrava e, assim, a massa de foliões outrora mantida à margem se condensava e seguia com os blocos rumo ao coração da cidade. Poucas opções ficariam aos abastados que não aquela de aderirem à festa popular. O que muitos tentaram e conseguiram durante certo tempo. O problema é que para o desenvolvimento do carnaval seriam necessários vários tipos de adesões interessadas, notadamente aquelas empresariais. Para que o comércio em torno do carnaval florescesse, a contrapartida teria que ser o incremento das vendas com maior participação daqueles que tinham um poder de compra alargado; mas, infelizmente, esses iriam se afastar cada vez mais, como já notara o major Bonifácio.Antes que a fuga das elites se institucionalizasse, a cada ano, outros homens daquela velha Maceió colaboraram para que a festa se tornasse popular e participativa. E independente das posições e funções sociais foram todos eles decisivos para o sucesso dos velhos carnavais. Um desses foi o Sr. Jerônimo Fiúza, jovem amigo do velho Major Bonifácio e representante comercial da multinacional Rhodia, o grande nome em matéria de lança-perfumes. Jerônimo Fiúza unia a atividade empresarial com o gosto pela fuzarca, participando ativamente do carnaval. Integrou o empresariado romântico. E isto significa afirmar que ele não apenas caía na festa, mas também que alimentava o ambiente carnavalesco de outras maneiras. Uma delas eram as constantes doações de caixas de lança-perfume que o comércio local promovia, e de cujas campanhas se nutriam os colunistas exclusivos do período momesco, com suas notas diárias a partir de janeiro lembrando e provocando os leitores à participação na festa do carnaval. O público muito interagia, ao que parece, através das desejadas premiações do éter auxiliar para aquelas explosões festivas das ruas e dos salões, até que o presidente Jânio Quadros acabasse com a brincadeira. Entre outros nomes de comerciantes carnavalescos, que as colunas especializadas da imprensa local destacaram estavam os de Gerbase e filho, Ernani, Morgado, Viana e Zé Calheiros, todos faturando no setor do comércio dos lança-perfumes e dos adereços para o carnaval.Ora, mas de nada adiantariam os empenhos do mediador social e do empresariado carnavalesco sem aquele valioso contributo do arregimentador direto das massas festivas, e o maior deles parece ter sido o Sr. Benedito Santos, um engraxate nascido na antiga rua do Macena, e morto em 1967, de um fulminante ataque cardíaco, em plena rua do comercio. Era largamente conhecido por Ras Gonguila, sendo o criador e líder do Cavaleiro dos Montes. Gonguila é um exemplo muito caro desta nossa cidade, e sua façanha é digna dos maiores reconhecimentos, como, a propósito, lhe prestará este ano o bloco Filhinhos da Mamãe. Um outro grande personagem foi um solista na dança do "passo", um homem comum e perambulante do Centro da cidade, gazeteiro e exímio dançarino do frevo, destacado e imbatível campeão cuja fama ultrapassou os limites de Alagoas. Nascido Armando Veríssimo Ribeiro em 1921, em São Luis do Quitunde, e morto em Maceió em 1949, ficou imortalizado como o Moleque Namorador. Negro como Gonguila, mas passista como ele só. Um antigo brincante do carnaval de Maceió assim falou de seu talento em fazer o "passo quebrado" a que se referira Théo Brandão: "quando ele [o Moleque] saía para quebrar, ninguém quebrava feito ele não".Foram os antigos carnavais as raras oportunidades que a nossa sociedade concedera aos seus filhos anônimos a chance de verem reconhecidos seus talentos lúdicos e espontâneos; umas das poucas lembranças que a memória logrou êxito em dividir a notoriedade social com ricos e pobres.Por isso, o carnaval de hoje em quase nada repete essa glorificação alcançada no antigo reino alagoano de Momo. Que o diga o malogro da tentativa do poder público em trazer, no ano passado, para Jaraguá os antigos e tradicionalíssimos blocos carnavalescos do passado. Estes desfilaram nos dias de carnaval, distante das animadas noitadas da prévia maceioense, e tiveram tão somente os fantasmas do velho Jaraguá a aplaudirem suas pálidas performances. Moral da história: até no carnaval, agora é cada um com seu cada qual!###
* É professor de antropologia e pesquisador no Laboratório da Cidade e do Contemporâneo (LACC) do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas.