13.8.11

Lições de Tavares Bastos sobre o Brasil

A produção de Aureliano Cândido Tavares Bastos (1839-75), filho da antiga cidade das Alagoas, marcou o pensamento social e político brasileiro e divide-se entre livros, panfletos, artigos, discursos, anotações, relatórios e cartas. Esse universo de escritos conforma um importante patrimônio para a ciência nacional, tanto pelo que representa de capacidade de compreensão da realidade em si como pela profunda influência que exerceu sobre outros intérpretes do Brasil. Joaquim Nabuco, por exemplo, reconheceu com todas as letras as dívidas que possuía com a perspectiva do teórico deodorense. Não é difícil perceber as teses de Tavares Bastos nos textos de autores tão basilares quanto Caio Prado Jr., Sérgio Buarque e Gilberto Freire, bem como encontrar provas do interesse acadêmico atual pela sua interpretação do país, principalmente no que se refere à sua abordagem das causas do atraso brasileiro, das deficiências políticas do país, dos conflitos em torno do pacto federativo e dos defeitos do sistema publico de educação.

A ausência de reedições mais freqüentes de suas principais obras contrasta com o fato de que o pensador alagoano tem sido objeto de reflexão privilegiado de estudiosos da realidade brasileira, notadamente entre os pesquisadores de sua dimensão política. Apenas para dar alguns exemplos, há várias dissertações e teses sobre o parlamentar alagoano concluídas nos último vinte anos nas melhores universidades do país e suas idéias têm sido referências obrigatórias no debate acadêmico, com rebatimento no Poder Legislativo nacional. É tempo, portanto, de superar a coexistência entre a grande valorização contemporânea de suas idéias e a dificuldade de acesso às suas principais obras. A nação brasileira tem problemas demais para dar-se ao luxo de conhecer o pensamento de um de seus filhos mais lúcidos apenas através de resumos e paráfrases feitos por comentadores. Seus escritos precisam ser disponibilizados para sociedade civil da maneira mais fidedigna, ampla e democrática possível.

A escassez de edições das obras do autor alagoano, cuja importância ninguém ainda colocou em dúvida, causa mais estranheza pelo fato de que seus livros já estão sob domínio público. Em nossa opinião, as reedições não têm ocorrido devido aos vários defeitos do campo editorial brasileiro, marcado pelo descompasso entre as necessidades da ciência e os interesses comerciais. Entretanto, como é comum no campo das ciências humanas, também há motivos ideológicos e políticos para o fenômeno.
  
O primeiro livro de Aureliano Cândido Tavares Bastos, denominado Cartas do Solitário, de 1862, foi um sucesso tão retumbante que obteve uma reedição revista e ampliada no ano imediatamente posterior. A boa recepção do livro parece ter sido derivada de três variáveis: 1) uma sensação generalizada na sociedade civil de repulsa à ineficiência do Estado e ao Partido Conservador, há décadas no poder; 2) a qualidade e a profundidade da análise feita pelo autor sobre os principais problemas da cultura política brasileira; e 3) o fato de que o livro foi composto a partir de artigos publicados anonimamente, com enorme repercussão, no influente jornal carioca Correio Mercantil.

A obra elevou a consciência da sociedade civil relativa aos males nacionais numa conjuntura na qual a opinião pública estava disposta a essa aprendizagem. Sua terceira edição somente ocorreria em 1938, na famosa Coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, no contexto pós-Revolução de 1930, quando as explicações clássicas do Brasil moderno estavam se fazendo e o clima subjetivo trazido pelo Estado Novo, marcado pela repulsa a autores liberais, ainda não se estabelecera. A quarta edição somente ocorreria em 1975, pela mesma editora em consórcio com o Instituto Nacional do Livro e o Departamento de Ação Cultura, quando a ditadura já dava sinais de desgaste e a opinião pública procurava uma alternativa democrática. 

Sua segunda obra, O Vale do Amazonas, de 1866, também foi muito bem acolhida e igualmente refletia um debate fundamental para a sociedade civil da época: a abertura do comércio do rio Amazonas aos outros países, o que tinha reverberações evidentes no debate sobre o modelo econômico nacional e o fortalecimento da fronteiras brasileiras. Contudo, numa trajetória parecida com a experimentada por Cartas do Solitário, a obra só obteria uma segunda edição em 1937, uma terceira em 1975 e uma quarta em 2000.

O terceiro e o mais importante livro do autor, publicado em 1870, denomina-se A Província e consiste tanto num monumental estudo sobre o Estado brasileiro quanto numa proposta federalista para os seus males. Foi acolhido como um clássico desde seu aparecimento e passou a ser cultuado por várias gerações de intelectuais brasileiros. Uma prova muito prática desse acolhimento da posteridade é o fato de que os poucos exemplares desse livro existentes no acervo bibliográfico de uma instituição acadêmica tão representativa quanto a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) são provenientes das bibliotecas pessoais (transformadas em fundos) de Eduardo Prado, Sérgio Buarque de Hollanda e Maurício Trautemberg, entre outros intelectuais desse quilate. Apesar dessa importância científica, o livro também sofreu da má sorte editorial dos dois anteriormente citados. Sua segunda edição só surgiria em 1937, sua terceira em 1975, seguida de mais duas, em 1996 e 1997. Ou seja, somente quatro edições após cento e quarenta anos de sua publicação.

O quarto livro, editado pela primeira vez em 1939, na citada Coleção Brasiliana, é de fato a reedição de importantes panfletos publicados pelo autor e ganhou o inspirado nome de um dos textos que carrega: Males do Presente, Esperanças do Futuro. Para se ter uma idéia da importância desse volume, basta sublinhar que no texto que lhe dá nome há a primeira exposição da tese original que liga os males do Brasil às características retrógradas do Estado português e da colonização lusitana, tese que será decisiva no pensamento social e político brasileiro posterior, como podemos constatar em Caio Prado Jr., Sérgio Buarque e Raimundo Faoro.

Enfim, as desventuras editoriais das principais obras de Aureliano Candido Tavares Bastos parecem se explicar pelo fato de que seu pensamento radicalmente democrático chocou-se com várias décadas de hegemonia do pensamento autoritário na sociedade civil e no Estado brasileiro. O federalismo propugnado pelos republicanos positivistas era antípoda ao proposto pelo intérprete alagoano, pois se baseava no elitismo político e na idéia de estabelecer as mesmas instituições em todos os quadrantes do país, desrespeitando as especificidades regionais. Com a criação do Estado Novo (1937-45), o centralismo e a desconfiança em relação à democracia chegaram a um dos seus momentos mais intensos na história do país. A esquerda marxista da época, olhando apenas o liberalismo econômico do autor, não percebeu o forte caráter subversivo das teses do parlamentar alagoano sobre o fortalecimento do espaço público. Os integralistas, pela própria natureza antidemocrática de sua doutrina, viam o filho da atual cidade de Marechal Deodoro como um dos seus principais adversários ideológicos.

Com a ditadura de 1964-85, surgiu outro momento em que o caráter libertário do pensamento tavaresbastiano não facilitava as iniciativas de reedição de suas obras. A pressão da direita contra as instituições republicanas e os valores democráticos juntou-se à desvalorização do caminho pacífico e institucional pelas mais influentes agremiações políticas da esquerda no pós-1964 para deixar o autor novamente nas sombras. Somente com a volta do Estado de Direito Democrático, estabelecido na Constituição de 1988, criaram-se as possibilidades para uma vivência com a liberdade política suficientemente longa para ensejar novo interesse acadêmico e científico pela obra de Aureliano Candido Tavares Bastos.

Entre 1988 e 2007, foram defendidas doze dissertações e teses sobre Tavares Bastos, com foco no seu pensamento político, econômico e educacional. O Senado Federal reeditou o livro A Província duas vezes, em 1996 e 1997. A editora Itatiaia reeditou o livro O Vale do Amazonas em 2000. Em 2001, a editora Topbook reeditou o livro As Idéias Fundamentais de Tavares Bastos, de Evaristo Moraes Filho. No ano de 1999, a editora 34 publicou o livro Centralização e Descentralização no Império: o debate entre Tavares Bastos e o Visconde de Uruguai, de Gabriela Nunes Ferreira. Finalmente, a editora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) lançou, em 2002, o livro A Utopia Federalista: estudo sobre o pensamento político de Tavares Bastos, de Walquíria G. D. Leão Rego.

Seria importante que outras instituições reforçassem esta tendência generosa de levar ao público brasileiro o genuíno pensamento de um dos mais lúcidos filhos deste país.


Golbery Lessa



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