18.3.06

Entrevista de Otávio Brandão sobre as Alagoas de 1917

Do site: (http://www.cpdoc.fgv.br)

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)
Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A
citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo.
REGO, Otávio Brandão. Otávio Brandão (depoimento, 1977). Rio
de Janeiro, CPDOC, 1993. 139 p. dat.
OTÁVIO BRANDÃO
(depoimento, 1977)
Rio de Janeiro
1993
Ficha Técnica
tipo de entrevista: história de vida
entrevistador(es): Maria Cecília Velasco e Cruz; Renato Lessa
levantamento de dados: Maria Cecília Velasco e Cruz; Renato Lessa
pesquisa e elaboração do roteiro: Maria Cecília Velasco e Cruz; Renato Lessa
sumário: Nara Azevedo de Brito
conferência da transcrição: Nara Azevedo de Brito
copidesque: Elisabete Xavier de Araújo
técnico de gravação: Clodomir Oliveira Gomes
local: Rio de Janeiro - RJ - Brasil
data: 15/01/1977 a 10/02/1977
duração: 6h 50min
fitas cassete: 05
páginas: 139
Entrevista realizada no contexto da pesquisa "Trajetória e Desempenho das Elites Políticas
Brasileiras", parte integrante do projeto institucional do Programa de História Oral do CPDOC,
em vigência desde sua criação, em 1975.
Esta entrevista subsidiou a elaboração da tese de doutorado de Dulce Pandolfi, publicada no
livro Camaradas e companheiros: memória e história do PCB (Rio de Janeiro, Relume-Dumará;
Fundação Roberto Marinho, 1995).
temas: Anarquismo, Astrogildo Pereira, Bloco Operário e Camponês (1928-1930),
Cooperativismo, Greves, Movimento Operário, Otávio Brandão, Partido Comunista do Brasil,
República Velha (1889-1930), Sindicalismo, Sindicatos de Trabalhadores.


"Sumário
1ª Entrevista: 15.01.1977
Origem familiar; formação escolar e intelectual; jornal A Semana Social; protesto contra a
Primeira Guerra Mundial e a prisão; os anarquistas; sindicalismo em Maceió; criação da
Socidadade dos Irreverentes e da Congregação Libertadora da Terra e do Homem; setores
ativos do operariado; sindicatos amarelos; anarquismo e anarco-sindicalismo; políticos e
movimento operário; anarquismo e revolução; Insurreição de Magé (1918); inviabilidade do
anarquismo; sindicatos anarquistas; a Coligação Social; Federação Operária; ação política
anarquista; caráter individualista do anarquismo; socialistas e positivistas; a imprensa e a
questão social; relações com Prestes; o Bloco Operário e Camponês; dificuldades do BOC em
São Paulo; Teotônio Sousa Lima; atividade política nas fábricas; aliança com o
tenentismo.............................. p. 1-37
2ª Entrevista: 21.01.1977
Contatos com anarquistas; reunião em Buenos Aires e liquidação do BOC (1930); expulsão do
Brasil (1931); influência do BOC entre os trabalhadores; I Conferência Comunista do Brasil;
difusão do anarquismo no Brasil; José Elias da Silva; desagregação do PC; popularidade dos
políticos entre os operários; os amarelos no porto; movimento cooperativista; jornal A Voz do
Povo; greve da Leopoldina (1920); deportações de anarquistas por Epitácio Pessoa; Lima
Barreto; organização das greves; greve dos gráficos (1929); adesão de Astrojildo ao
comunismo; o Partido Comunista e a disciplina partidária; a insurreição de 1935; Coligação
Social (1920); Everardo Dias; o grupo Clarté; o Partido Socialista; ligações dos sindicatos com
o coronel Bandeira de Melo; luta contra os anarquistas; Astrojildo Pereira; reorganização dos
sindicatos; insurreições da Internacional para o movimento no Brasil; atuação de Astrojildo
Pereira; criação do PC e propostas de trabalho; I Congresso do PC; perfil dos fundadores do
PC; o trotskismo; papel da esposa no movimento operário.......................................................
p.37-97
3ª Entrevista: 10.02.1977
Influência da Internacional na fundação do PC; reorganização dos sindicatos; órgãos do PC;
trabalho junto aos camponeses; vereador em 1946; organização interna do PC; interferência da
Internacional na linha do partido; atividades nos sindicatos; diferenças entre anarquismo e
comunismo; o PC e as leis trabalhistas; proposta de frente cínica entre o PC e os anarquistas;
tentativa de ligações com a Coluna Prestes; adesão ao comunismo; II Congresso do Partido;
política reformista burguesa nos anos 20; sistema eleitoral na República Velha; criação e
atuação do BOC; atuação como vereador; Revolução de 1930; reunião em Buenos Aires;
legislação eleitoral........................................................................................................... p. 97-139
1ª Entrevista: 15.01.1977
M.C. - Otávio, onde e quando você nasceu?
O.B. - Eu nasci a 12 de setembro de 1896, na cidade de Viçosa, de Alagoas, no interior,
a cem quilometros do litoral, no meio das plantações de cana-de-açúcar. Subiam,
desciam ladeira, até as portas da cidade, aquelas plantações de cana-de-açúcar. Viçosa é
uma cidade muito pequeno-burguesa, cercada de latifúndios, antigos engenhos,
engenhos de açúcar. Só muito depois é que apareceu uma usina. Então, o ambiente era
este: uma pequena burguesia urbana - uns progressistas, outros confusos, outros
reacionários - e aquele latifúndio cercando a cidade, latifúndios de plantações de canade-
açúcar. Lugar muito bonito, o rio Paraíba no meio dos pedregais, aquelas matas, às
vezes matas virgens. Uma coisa raríssima na história do Brasil a gente encontrar matas
virgens. Uma dessas, subindo a serra Dois Irmãos, atravessei com um grupo de amigos:
seis horas subindo e abrindo caminho com um facão, porque de outra forma não era
possível dar um passo - aquele entrelaçamento de cipós, da base até lá em cima, eram
matas virgens. Agora estive em Itatiaia e vi lá matas bonitas, mas os paus são finos, quer
dizer são recentes, e a mata não é virgem. A gente pode penetrar de um extremo a outro,
como na Europa.
M.C. - E qual era a profissão de seu pai?
O.B. - Meu pai era prático de farmácia. Era um homem democrata, progressista, um
homem de idéias muito avançadas para a época. Não esqueça de que, chegou 15 de
novembro de 1889, houve a Proclamação da República no Rio de Janeiro, e chegou lá a
notícia muito depois. Não havia telégrafo; não havia estrada de ferro. Então, os
pequeno-burgueses urbanos reuniram-se na Câmara Municipal e proclamaram sua
adesão à República. Bom; até aí, nada demais. Na hora dos triunfadores, sempre
aparecem os oportunistas. O diabo é que Viçosa ficava longe, no interior, e um dia
chegou a notícia: "Dom Pedro II recompôs a Monarquia". E todos começaram a dizer:
"Estamos perdidos, vamos ser enforcados, porque fizemos um documento público."
[risos] E, assim, um escândalo tremendo. Então, foram a meu pai para ele retirar a
assinatura. Estava lá: Manuel Correia de Melo Rego. Mas meu pai respondeu: "Não; eu
coloquei a assinatura; agora, acabou-se. Prefiro ser enforcado a retirar a assinatura."
Então ele deu coragem aos outros pequeno-burgueses e ficou o dito pelo não dito.
Depois é que chegou a notícia de que a República estava se consolidando, que a
Monarquia estava perdida. Ele disse: "Está vendo? Imagine que vergonha, nós, depois
de termos assinado esse documento, retirarmos a nossa assinatura! Teria sido uma
desmoralização total." Eu tenho aí uma cópia desse documento.
Era um homem assim, de caráter! Eu, do ponto de vista do pensamento, devo muito a
meu pai, e do ponto de vista do sentimento, devo à minha mãe.
Minha mãe era dessas mulheres amorosas, cheia de carinho, cheia de doçura. Uma
coisa admirável. Muitos anos depois saí pelo mundo... Mas ela morreu logo, quando eu
tinha quatro anos de idade.
M.C. - Você tinha irmãos?
O.B. - Tinha uma irmã - os outros morreram - que ainda está viva. Depois da morte de
minha mãe, eu cresci, saí pelo mundo procurando suas amigas. Chegava num lugar,
perguntava: "A senhora conheceu d. Maroquinha, da Farmácia Popular, rua do
Juazeiro?" Ela dizia: "Ah, eu conheci:" E eu perguntava: "Como era dona Maroquinha?"
Ela respondia: "Era uma maravilha de mulher." Para as amigas ficou aquela recordação.
Então, do ponto de vista do sentimento, devo muito a minha mãe. Está ali o retrato dela,
ao lado do meu pai.
M.C. - Otávio, o que você estudou? Onde?
O.B. - Bem; eu estudei em Viçosa. Aprendi a ler com a professora Maria do Â. Era uma
negra. [risos] Dava bolo a três por dois. Eu tinha muito medo dela! Ela, porém, nunca
me bateu. Aprendi rapidamente a ler. E é interessante que Graciliano Ramos, que hoje é
uma glória nacional, também aprendeu a ler com Maria do Â. Ele num dos livros, ataca
a Maria do Â; e eu, num artigo, no Diário de Notícias, no Suplemento Literário, a
defendi. Ela ensinou a ler a dois escritores: [risos] um é uma celebridade; o outro é
negado por todos os lados. É uma questão de classe! Mas, de qualquer forma, ela nos
ensinou a ler, além de outros e outros. É uma mulher pobre, negra, professora primária,
perdida no interior de Alagoas, vivendo só, naquela pobreza, e acabou na miséria Maria
do Â.
M.C. - E o ginásio?
O.B. - Bem; depois fui para outros colégios. Sobretudo o colégio do Professor Tibúrcio
Nemésio. Este homem tinha idéias progressistas. Era da pequena burguesia urbana,
progressista, lá de Viçosa. Ele também contribuiu para o meu desenvolvimento. Depois,
fui para Maceió, e aí quiseram converter num santo o caboclo rebelde de Viçosa. Era um
colégio de Irmãos Maristas, mas eu não queria aprender o catecismo. Meu pai não me
ensinou o catecismo, meu pai nunca me mandou à igreja. Ele só acreditava em Deus e
na madrinha dele - esta coisa de adotar uma santa, que era madrinha da Igreja de Santa
Rita, lá na região dos Canais e das Alagoas. Ele falava: "Só acredito em Deus e na
minha madrinha Santa Rita." Nunca me mandou à igreja. E os Irmãos Maristas queriam
me ensinar o catecismo. Eu não queria, então, fui castigado. Parece que era às quatro
horas da tarde a hora de ir brincar em Maceió. Quatro horas da tarde, eu era castigado. Ia
para um salão, ficava olhando a parede [risos] durante duas horas. Parece que foram
trinta e tantas horas de castigo para eu me tornar católico! Eu, de fato, não era católico e
não conhecia o catecismo. No fim, eu, desesperado, sem ter para quem apelar, penso:
"Se eu recusar, volto a Viçosa, e lá não tem nada, não tenho futuro. Que fazer?" No final
aceitei e me tornei católico.
M.C. - E quando é que você rompeu com o catolicismo?
O.B. - Fui católico dois anos e meio. Em 1912, rompi totalmente e nunca mais voltei ao
catolicismo. Fui o primeiro a romper na família. Então foi um escândalo, uma coisa
tremenda. Meu tio, Alfredo, que pagava meus estudos, ficou desesperado e dizia:
"Quando eu morrer, vou pagar este crime de ter contribuído para educá-los, e você saiu
assim contra a Igreja!" Havia um tio padre, irmão da minha mãe. Foi também uma luta
tremenda contra ele. Havia o bispo de Alagoas, que também era Brandão. Tudo era
Brandão e tudo católico. E essa gente toda caiu em cima de mim. Uma coisa
terrível! Foi uma luta desesperada, que durou de 1912 a 1919. Em 1919 tudo se
complicou, porque havia nossa luta no seio da família, mas também havia a luta social,
em Maceió, ajudando os operários a conquistar o dia de oito horas, conquistar aumento
de salários, liberdades sindicais. Aí fui metido na cadeia de Maceió, e a única solução
era fugir de Alagoas. A família se opunha, mas havia já um bandido para me matar.
Então, foi em 1912 a ruptura. Claro que eu não podia ter a base teórica que tenho hoje:
falta de livros, falta de amigos. Fiquei sozinho naquela luta, anos e anos. E a família
toda dizendo:" Volta, volta ao catolicismo."
M.C. - Você participou de algum grupo anticlerical?
O.B. - Não.
M.C. - Existia algum em Maceió?
O.B. - Não; não havia ninguém. Eu falava com uns, com outros, ninguém queria. Eu
sozinho, absolutamente só, anos e anos. Tal o atraso! Não havia livros, não havia
ambiente, não havia nada. Fui estudando literatura em geral, como, por exemplo,
hindus, que consegui, os gregos sobretudo, os alemães, os russos etc. E, estudando
filosofia, li o livro de Büchner, Força e matéria, li Darwin, li Haeckel, biólogos. O que
encontrei, eu fui lendo e devorando com aquela ansiedade. Para poder resistir àquela
pressão toda do ambiente. Li Nietzsche. E isto me salvou. Eu digo:" Não; não volto
nunca mais, nunca mais."
M.C. - Isso foi na época em que você estava na faculdade?
O.B. - Sim; eu estava no Recife, em 1912, estudando farmácia. Estudei três anos e
completei o curso no Recife. Mas, paralelamente, estudei os naturalistas, ciências
naturais, teoria e prática. Saía pelos arredores de Recife estudando botânica,
mineralogia, geologia. E estudando literatura universal. Aí conheci os hindus; conheci o
Rig-Veda, que é o mais bonito dos quatro Vedas. Li o Rig-Veda; li Sa Kuntale,1 de
Kalidaga; li o que encontrei. Até hoje eu guardo esse exemplar do Sa Kuntale. Eu
admirei muito os hindus. E fui procurando os materialistas, aqui, ali e acolá.
M.C. - E como você entrou em contato com as idéias anarquistas?
O.B. - Isso já foi depois, em Maceió. Em Maceió, houve um tipógrafo, Antônio
Bernardo Canelas. Ele era tipógrafo, jornalista, tudo. Ele editou o jornal A Semana
Social, em Maceió. Ele não estudava. Acreditava demais na própria intuição, mas era
muito inteligente. Tinha antenas; pegava as coisas no ar. Canelas editou esse jornal.
Esse jornal teve muita importância, porque, quando o governo declarou guerra à
Alemanha, A Semana Social botou lá a manchete: "Abaixo a guerra imperialista."
Somente Maceió, Rio e São Paulo é que protestaram contra a guerra. A esmagadora
maioria dos intelectuais: Rui Barbosa, Coelho Neto, toda essa gente apoiando os
Aliados contra os alemães. E nós contra os Aliados e contra os alemães, de modo que
foi um coisa impressionante. E Canelas tinha amizade com Astrojildo Pereira, aqui no
Rio de Janeiro. Astrojildo morava em Niterói, a correspondência vinha para o Rio de
1 Sa Kuntale (o anel perdido) é uma peça do poeta indiano Kalidaga (Sec. V).
Janeiro. Então, Astrojildo começou a dar indicações. Aí eu li Bakunin, Deus e o Estado;
li Kropotkin, A conquista do pão; li Sebastião Faurre; li Malatesta. O que encontrei, fui
lendo. E li Nietzsche, que contribuiu muito, porque, como ele mesmo diz, no prefácio lá
de um dos seus livros: "Retirai deste livro amargo, razões para tudo." [riso] É como a
Bíblia, a gente tira dali o que bem quer. E então, Nietzsche serviu para eu resistir àquele
ambiente clerical, àquela pressão da família, àquilo tudo. Ele representou um papel
positivo. E as outras idéias dele, em filosofia e em sociologia, eu repudiei. Admirei
sobretudo as poesias, como aquele "Canto da Noite", que ele escreveu em Roma.
Quanto às idéias, muitas das idéias dele, que depois contribuíram para o nazismo, eu
rechacei já em 1916, 1917, quando ele diz: "O Estado é o mais frio dos monstros..."
Porque Nietzsche tem muitas coisas anarquistas e tem coisas que serviram para Hitler. A
primeira parte foi a que eu adotei. O livro dele O anticristo, que é uma crítica ao
cristianismo, também li. E foi o que eu encontrei em Maceió. Sobre a Rússia, o único
livro que encontrei foi um livro do século passado... Stepniaquim descrevendo os
Narodnaiavolia, os terroristas do século passado. Foi o único livro que encontrei, não
encontrei mais nada de lá. Ou então artigos de jornal, mas artigos caluniosos. Todos
esses jornais caluniando a revolução na Rússia.
M.C. - A Semana Social foi fundada quando?
O.B. - Mais ou menos em 1916 ou 1917, por aí assim.
M.C. - E você começou a escrever para o jornal em que época?
O.B. - Escrevi artigos contra, por exemplo, aquelas coisas do Olavo Bilac, o
militarismo, a defesa nacional, aquilo tudo. Escrevi um artigo de que ainda me lembro.
Fui à redação, sentei-me num canto qualquer e fui ditando, Canelas escreveu e publicou.
E um outro... Eu li A mãe, de Máximo Gorki, que exerceu uma influência muito grande
em mim, porque eu vi a mãe proletária, a mãe operária, que, levada pelo carinho e pelo
amor do filho, foi-se transformando até se tornar uma revolucionária. A mãe, de
Máximo Gorki, exerceu grande influência na minha vida. E escrevi [risos] influenciado
pelo livro de Gorki, um apelo à revolta. Foi um escândalo! Saiu em A Semana. Foi um
escândalo, uma coisa terrível, chamando o povo todo à revolta contra os comendadores,
os latifundiários, a burguesia.
M.C. - O jornal tinha uma tiragem grande?
O.B. - Não; grande não podia ser, porque era boicotado. Somente grupos de operários,
em Maceió, e pequeno-burgueses urbanos progressistas é que liam A Semana Social.
M.C. - Ele era boicotado de que forma?
O.B. - Bem; dinheiro não tinha. Canelas deixava de comer para juntar dinheiro para
poder comprar papel, e havia sempre dificuldades.
M.C. - Ele era o único editor do jornal?
O.B. - É; ele era o tipógrafo, o jornalista, o doutor, o escritor, tudo, tudo. Ele não tinha
cama. Havia, assim, um lugar debaixo... Não tinha linotipo, era tipógrafo.
Debaixo daquelas caixas dos tipos, um cantinho, era ali que ele dormia.
M.C. - E os operários em geral liam esse jornal?
O.B. - Liam; os operários de Maceió liam esse jornal. Grupos de operários. Acabou tudo
na cadeia de Maceió. Uns 14!
M.C. - Por quê?
O.B. - Imagine! A Igreja Católica zangada, porque eu fiz conferências, mostrando a
origem da terra alagoana através de milhões de anos, e perguntavam: "E Deus?" Eu
respondia:" Deus não tem nada a fazer nesse terreno. É a geologia. Deus não entra nesse
terreno." Então a Igreja muito zangada, pois queria que eu fosse um esteio da Igreja
Católica como os outros Brandões. Por exemplo, se a gente chegava num lugar e
perguntava: "Quem construiu aquela igreja?" A resposta era sempre: "Foi um tal
Brandão." Mais adiante, a gente perguntava: "E essa outra?" "Foi um tal Brandão." E
quando não construiu, pelo menos reconstruiu. O irmão da minha avó, o vigário
Francisco de Borja Barros Loureiro, reconstruiu a igreja de Viçosa, que até hoje está lá.
M.C. - Quer dizer que a sua família é uma família tradicional em Alagoas?
O.B. - E clerical, com aquele fanatismo danado, muito duro, muito duro. E essa coisa de
virgindade de Maria! Eu dizia: "Não me aborreçam com bobagens." E eles reagiam:
"Como bobagem? Isso é uma coisa sagrada, e não sei o quê." Eu dizia: "Ela foi mãe e
ficou grávida, não podia ser mais virgem." Eles respondiam: "Mas que escândalo!" E os
tios ficavam ofendidos, não queriam discutir. Eles diziam: "Mas que desaforo, que
ofensa." Eu explicava: "Não estou ofendendo o senhor, não estou dizendo nada." "Um
menino que vi nascer outro dia quer me dar lição." "Eu não quero dar nenhuma lição,
mas estudei religião, e o senhor não estudou." "Que desaforo, que ofensa." Não havia
meio de discutir. Nesse ambiente era muita coação, sempre. Os parentes todos, um
bando de beatos. Precisava ter paciência, se não eu os mandaria: "Vão para o inferno,
que se danem!" Mas eu não dizia.
M.C. - Mas como é que os operários foram presos? O senhor estava contando...
O.B. - Bem; isso já foi depois. Em 1917, esse protesto contra a guerra repercutiu muito.
Maceió teve essa glória - Maceió, Rio de Janeiro e São Paulo. Ninguém mais protestou.
Um avacalhamento geral. A massa dos intelectuais era toda de aliadófilos, como Rui
Barbosa. Todos diziam "Esta é a última guerra! Esta é a guerra da justiça! É a guerra do
direito contra a força! Eu sou pela força do direito, contra o direito da força!" E diziam
"Muito bem! Viva Rui Barbosa!" Essa palhaçada toda. E nós, contrários.
Isso abalou aquilo tudo. O jornal foi fechado. Canelas teve que ir embora para o
Recife, não pode mais ficar. E, pela primeira vez, penetrei na vida ilegal. Passei 15 dias
no interior. Veio a multidão - imagine -, a multidão envenenada: empregados do
comércio, estudantes, cerca de cinco mil pessoas. Fizeram um comício na praça dos
Marítimos e, depois, saíram para a redação de A Semana Social. Lá, bateram à porta,
que estava fechada, pois o Canelas estava dormindo. Uma vizinha veio e acordou o
Canelas. Ele acordou com aquele barulho: "Lincha Canelas! Mata Canelas! Espião
boche!" (Chamavam os alemães de boches.) Então, a vizinha passou pelos fundos...
Sabe como são essas casas no interior: não têm quintal, e passa-se de uma casa para a
outra. Essa senhora levou Canelas para a sala de jantar e botou a rede por cima dele. Ele
ficou ali encolhido, ouvindo esse barulho de cinco mil pessoas gritando: "Espião boche!
Acaba com isso! Mata! Lincha o bandido!" E, naquele meio, um sujeito, não sei quem,
gritou: "Quem escreveu o artigo contra a guerra não foi Canelas, foi Otávio Brandão!
Vamos quebrar as costelas dele!" [riso] Minhas costelas não são de ferro! Eu já previa
isso e estava no interior, lá em Viçosa. Então, no final, os amigos que estavam na
multidão, disseram: "Não; não foi Otávio Brandão que escreveu o artigo contra a
guerra."
Passou; mas o jornal morreu. Minha família aí embrulhou tudo, e todos
começaram a dizer: "Antes era por causa do catolicismo; agora já se mete no meio
desses desordeiros e é acusado de espião boche." Eu digo: "Eu não; não tenho nada de
espião boche. Essa guerra é um crime, nós somos contra os alemães e contra os
Aliados."
Depois, no final, houve a insurreição de 1918, dos operários aqui, e Oiticica foi
deportado para Maceió. Eu fui visitá-lo no engenho Mundaú, da família dele. Então,
conversamos um pouco. Sei que aproveitaram umas conferências de um espírita e
lançaram um manifesto. A Polícia saiu atrás do autor do manifesto, e o encontrou.
Meteram-no na cadeia. Fui visitá-lo e, por crime de solidariedade, fui preso. Creio que
13 ou 14 pessoas, inclusive operários, foram presas, acabaram na cadeia de Maceió.
M.C. - O manifesto era sobre o quê?
O.B. - Não me lembro mais. O manifesto foi provocado por esse Viana de Carvalho,
que era espírita e andava fazendo propaganda do espiritismo. Então, parece que Oiticica
escreveu este manifesto. Não tinha grande importância, mas a questão era que antes nós
tínhamos levantado esses problemas todos, e a Polícia aproveitou para acabar com o
movimento. Invadiu os sindicatos, deu pancada a torto e a direito...
M.C. - Que sindicatos?
O.B. - Ah! Nós criamos um sindicato de operários. Era o Sindicato de Ofícios Vários.
Quer dizer, da Igreja Católica, zangada por causa da nossa explicação materialista da
origem da terra alagoana, perguntavam: "E Deus?" Eu dizia: "Deus não entra, não tem
nada a fazer na geologia." A burguesia zangada, por que os operários trabalhavam 12,
14, 16 horas na fábrica de tecidos de Fernão Velho, em Rio Largo, por um salário
miserável, e nós lutávamos pelo dia de oito horas. E fomos conquistando aqui, ali e
acolá, o dia de oito horas, aumento de salários e liberdades sindicais. Bom: a burguesia
zangada; a Igreja Católica zangada; os agentes do imperialismo, que vendiam gasolina e
essa coisas todas, zangados, porque provei que Alagoas tinha petróleo, e eles diziam
sempre: "O Brasil não tem petróleo! O Brasil não tem petróleo!" E eu provei que
Alagoas tinha petróleo. Isto em 12 de outubro de 1917. Os latifundiários zangados,
porque nós penetramos no interior pregando divisão das terras. "A terra aos
trabalhadores de enxada." Então se juntaram todos: a Igreja Católica, os agentes do
imperialismo, a burguesia, os latifundiários. E o ódio. Então, publicavam:
"Maximalismo em Maceió." Aquelas manchetes e aquilo tudo.
M.C. - Quer dizer que você também atuou politicamente na cidade?
O.B. - Isso em 1917; e fui ao interior, aos engenhos dos meus parentes, procurar lá os
trabalhadores de enxada e dizer: "A terra pertence a vocês! Divisão das terras! A terra ao
trabalhador de enxada!" A família se reuniu e disse: "Ainda mais essa! O homem é um
inimigo de Deus, um inimigo de Cristo, e agora é inimigo dos próprios parentes, quer a
desgraça dos parentes!" Houve um conselho da família proibindo que eu visitasse, lá, os
latifúndios.
R.L. - Otávio, só havia anarquista em Maceió?
O.B. - Houve o Canelas, que era anarquista; houve o... Rosalvo Guedes; que foi meu
amigo, uma criatura excelente, ele foi preso. Houve um que tinha um nome estrangeiro
mas era brasileiro.
M.C. - Mas todos morando em Maceió?
O.B. - Todos vivendo em Maceió.
M.C. - E fora de Maceió?
O.B. - Fora de Maceió, houve o meu amigo Alcides Pimenteira, um alfaiate. Um dia a
Polícia foi lá prendê-lo e o encontrou: "Onde é que está Alcides Pimenteira?"
Mostraram o morro do cemitério e disseram: "Está ali; vão buscá-lo." Estava morto.
M.C. - E ele morava onde?
O.B. - Morava em Viçosa, na rua Elói Brandão.
M.C. - Em Viçosa, tinha alguma fábrica?
O.B. - Não; não tinha fábrica, mas havia o descaroçador de algodão, havia os padeiros,
havia assim um movimento. Em 1946, criaram uma célula e deram o meu nome a essa
célula. Célula do Partido Comunista. Mas isso em 46.
M.C. - E, em Maceió, era grande a classe operária?
O.B. - Não era grande; havia muito artesão, operário de construção civil, alfaiate
artesão, alfaiate a domicílio. Juntando esta gente toda, dava alguma coisa. Fizemos um
comício com quinhentas pessoas na sede do Sindicato de Ofícios Vários. Aquela massa
ali, e nós falando.
M.C. - Existia outro sindicato?
O.B. - Existia um outro na rua 16 de Setembro: Sindicato de Ofícios Vários. O que
houve foi que nós fomos procurar e mexer essa gente toda; mas nós não tínhamos,
assim, uma base teórica. Depois eu lhe dou o meu livro, Caminho, que descreve esse
movimento em Maceió, de 1916, 1917, 1918, até março de 1919. Acabou tudo logo, na
cadeia de Maceió.
M.C. - Quer dizer que nem todos esses artesãos eram sindicalizados?
O.B. - Não; não eram sindicalizados. Nós ainda fazíamos um trabalho de propaganda,
de congregar essa gente toda. Sindicato de Ofícios Vários, isto é, de qualquer um.
Qualquer um, de qualquer que fosse o ofício aderia ao sindicato. A gente jogava a rede,
dizia: "Nós somos pescadores. Nós lançamos a rede de arrasto e puxamos. O que vem
está certo." Não podíamos, por exemplo, fazer um Sindicato dos tecelões. Havia fábrica
de tecidos em Jaraguá, mas aquilo era como fortalezas, muito difícil de penetrar; havia
a fábrica de tecidos de Fernão Velho, em Rio Largo, mas era também muito difícil
penetrar.
M.C. - Porque era difícil, Otávio?
O.B. - Porque eu morava em Maceió, e era preciso ir morar naqueles lugares. E a
vigilância era tão grande! Havia os capangas, bandidos pagos pelas fábricas para vigiar,
espiões e tudo isso. O atraso era tão grande que a pessoa se arriscava muito. Eu me
arrisquei indo lá nos engenhos e fazendas, fazendo propaganda no meio dos
trabalhadores. Havia capangas por todos os lados.
M.C. - E, em Maceió, como é que vocês faziam a propaganda?
O.B. - Bem; nós, lá nos sindicatos, fazíamos conferências, fazíamos comícios. A Polícia
foi deixando, até certa hora.
M.C. - Vocês tinham algum jornal além de A Semana Social?
O.B. - Não; só A Semana Social e, depois, manifestos. Imagine: havia uma roubalheira
para aumentar o preço do açúcar. Nós conseguimos descobrir isso e denunciamos os
nomes daqueles capitalistas. Reuniu-se a Associação Comercial de Alagoas para rebater
a acusação. Nós lançamos um manifesto e grudamos nos postes em 1918. Foi um
escândalo, uma coisa pavorosa. E o título era este: "Povo, à revolta!" E terminava
dizendo que o Brasil só endireitaria no dia em que - hoje não faria assim - o último
burguês fosse enforcado com as tripas do último político. [riso] Cada coisa dessas era
um escândalo. Uma cidade pacata, pequeno-burguesa, cheia de funcionários públicos,
aquela vida vegetativa, aquilo tudo, e aparece um grupo assim!
Primeiro, fundamos a Sociedade dos Irreverentes, o nome já... Mas entrou lá um
espírita e veio pregar espiritismo. Então, dissolvemos a sociedade. Dizíamos: "Não; já
tem espírita de mais aí. Não precisa mais."
M.C. - Isso foi quando, a Sociedade dos Irreverentes?
O.B. - Mais ou menos em 1917. Então, dissolvemos a Sociedade dos Irreverentes. Mas,
em 1918, fundamos uma coisa mais séria, que se chamou Congregação Libertadora da
Terra e do Homem, pregando a divisão de terra, aumento de salários, a valorização da
cultura brasileira, uma série de problemas. A questão agrária, li, discuti. E fomos
penetrando nas fazendas e engenhos, pregando "terra aos trabalhadores de enxada", a
divisão das terras. Um escândalo pavoroso.
M.C. - Você fundou a Congregação com quem?
O.B. - Fui um dos fundadores.
M.C. - E quem mais?
O.B. - Na maioria, eram pequeno-burgueses; os operários aderiram depois. Pequenoburgueses;
jornalistas; o poeta Faustino de Oliveira, uma criatura excelente, ainda está
vivo; o Rosalvo Guedes, que era um pequeno empregado; Umbelino Silva, também um
pequeno empregado.
M.C. - Canelas não participou disso?
O.B. - Não; já tinha sido expulso. A Polícia obrigou-o: "Ou você vai embora, ou será
preso e expulso." Então, ele foi para Pernambuco, e lá editou um jornal dos operários.
Depois, foi para Paris. Esteve aqui e acolá. Esteve em Moscou, num congresso. E, de
volta, ele disse: "Na hora de votar o projeto de Lenin, eu votei contra. Fui o único voto
contra." Eu lhe disse: "Foi uma asneira que tu fizeste; tinha que votar a favor." [riso] Ele
achava que ele era uma glória, mas eu disse: "Foi uma asneira; tinha que votar a favor."
[risos] Ele guardou o anarquismo até a morte. O Canelas tinha qualidades. Era corajoso,
valente, não se avacalhou. Mesmo no meio desses perigos, de tudo isso, era corajoso.
Mas acreditava na intuição e não estudava nada. Mesmo em Paris, não estudou nada.
Então, morreu anarquista. No final, acabou brigando, descompondo. Foi para o jornal A
Pátria, na seção operária, descompondo. Mas isso já foi uma história de 1923, 24.
M.C. - Voltando, então, para a época sobre a qual a gente estava conversando. Na
Congregação Libertadora da Terra e do Homem, vocês tinham o apoio de algum setor
da classe operária?
O.B. - Tínhamos operários.
M.C. - Que participavam?
O.B. - Sim; era, em geral, um movimento... Os russos chamam de stirrina2 um
movimento espontâneo dos operários. Um atraso muito grande. A macumba de lá se
chama xangô. Eram trabalhadores que não iam às reuniões para ir ao xangô. A cabeça
deles, cheia de xangô e iemanjá. Era uma luta muito grande. Para você ter uma idéia do
ambiente, eram fetichistas, quer dizer, xangô e toda esta coisa, espíritas, protestantes e
aquela massa de católicos, oficialmente católicos, mas na realidade eram católicos
fetichistas.
Eu trabalhava numa farmácia, e vinham aqueles doentes. Apareceu lá um doente
com uma úlcera muito grande na perna. Eu lhe disse: "Vamos tratar desta úlcera, tomar
injeções e lavar isso. Eu lavo." Lavei muita úlcera, muita ferida. Ele disse: "Quanto o
senhor cobra?" Eu respondi: "Nada." Ele perguntou: "Mas por que? Em nome de que o
senhor quer fazer isso?" Eu lhe disse: "É amor ao Brasil e à humanidade." Ele
continuou: "Mas nem um tostão?" Eu respondi: "Nem um tostão." Ele falou: "Vou
pensar." Dias depois, ele voltou e disse: "Não aceito. Sou espírita. Cometi muitos crimes
numa encarnação anterior, e agora esta úlcera é uma provação. Quando eu me
reencarnar, então, não terei mais úlcera e não terei mais esses sofrimentos todos. É uma
2 Em russo, no original, significa movimento espontâneo.
provação. Deus quis assim, Jesus Cristo quis assim, e isto ainda é uma bênção." Eu aí
dei uma tunda danada em Alan Kardec e na religião, mas ele ficou irredutível. Eu lhe
disse: "Você vai morrer, dá gangrena, e você morre." Tempos depois pedi notícias dele,
e ele tinha falecido. Era um ambiente assim.
M.C. - Quer dizer que a massa do operariado era toda...
O.B. - É; operários, assim, empesteados de fetichismo, de espiritismo, de catolicismo
misturado com fetichismo. Era uma luta muito grande e muito difícil.
M.C. - Mas que tipo de organização era a Congregação? Era um sindicato ou era uma
sociedade?
O.B. - Não era um sindicato; era uma associação, assim, para lutar pela reforma agrária,
no melhoramento das condições de vida e trabalho dos operários, por uma cultura
nacional, para aproveitar o folclore alagoano, que foi e é muito rico. Tudo isto. Mas isso
foi 1918, veio 1919, e a Polícia esmagou tudo.
M.C. - E quais foram os resultados práticos da ação desenvolvida pela Congregação?
O.B. - Bem; melhor dizer sobre todo esse processo... como A Semana Social e tudo isso.
O resultado prático foi o seguinte: em certas fábricas, conquistamos o dia de oito horas e
aumento dos salários. Trabalhavam 12, 14, 16 horas! Conseguimos aumento dos
salários e liberdades sindicais e essas idéias todas foram sendo espalhadas entre aqueles
intelectuais.
Imagina, houve uma exposição, com cento e tantos quadros. Eu fui à exposição.
Fui ver. Não havia um quadro inspirado por Alagoas. Nada. Nem a paisagem alagoana,
nem os homens alagoanos. Havia cópias de coisas japonesas, cópias de paisagens da
Europa, de Alagoas nada, nada. Uma escola de pintura, cento e tantos quadros, e não
havia um único de Alagoas. Então, fizemos um apelo para que se inspirassem na
natureza brasileira, no trabalhador alagoano, descrevendo a vida alagoana. E aí foram
surgindo. O Moreira e Silva passou a pintar homens e mulheres do povo: um vencido,
uma mulher fazendo renda e paisagens alagoanas. O outro, o Lima, este também
dedicou toda a vida às paisagens alagoanas. Paisagens lindas! Coisas maravilhosas.
Toda a vida, imagina! Em 1960, quando voltei a Alagoas, reencontrei-o. Ele me
prometeu um quadro, mas não deu. Dedicou toda a sua vida às paisagens, quer dizer, um
resultado concreto da nossa propaganda.
M.C. - E as reivindicações, como, por exemplo, aumento salarial, diminuição da jornada
de trabalho, foram conseguidas através de greves?
O.B. - Não; foram dessas agitações. Os patrões com medo! E os jornais escreviam:
"Maximalismo em Maceió! Cuidado! Perigo!" Era assim. Os patrões ficaram com medo.
M.C. - Quer dizer que eles concederam isso...
O.B. - Era a primeira vez, a primeira vaga de movimentos em geral. E eles diziam que
iam parar a fábrica. Os patrões ficaram com medo. Eram patrões muito reacionários,
muito atrasados, burrinhos, burrinhos. E, então, foram cedendo aqui, ali,
acolá. E os resultados só não foram maiores, porque, em 1919, como eu lhe disse, os 13
melhores militantes acabaram na cadeia de Maceió e os outros, espalhados aqui e ali,
perderam os empregos.
M.C. - Quais eram as principais pessoas que trabalhavam na Congregação Libertadora
da Terra e do Homem?
O.B. - Seu criado, Rosalvo Guedes, Alcindo de Oliveira, Umbelino Silva.
M.C. - Os mesmos que fundaram o Sindicato de Ofícios Vários?
O.B. - É; os mesmos.
M.C. - E, no campo, vocês conseguiram organizar um pouco os trabalhadores?
O.B. - Não, não; era muito difícil, muito difícil. No livro Caminho, eu escrevo que
chego num lugar e vem logo a religião: "Mas Deus fez o mundo assim, desde o começo
do mundo. O trabalhador ali, no cabo da enxada; e os donos das terra. É o Senhor. Foi
Deus quem fez assim. E o senhor quer acabar com isso?" Outros faziam outras
alegações. E, no final, os mais inteligentes disseram: "Bem; suponhamos: nós dividimos
a terra, retalhamos a terra, acabamos com isso. Vem o soldado imediatamente de
Maceió. O senhor garante que o soldado não virá para retomar a terra, restituir a terra ao
dono?" Eu não podia garantir. Eles falavam: "E como é que o senhor propõe uma coisa
que não pode garantir?" Então, eu vi que aquela propaganda não daria nada, que
teríamos que rolar muitos anos, teríamos que estudar a questão agrária a fundo, criar
organizações próprias para poder fazer alguma coisa no campo.
M.C. - Vocês não tiveram tempo de criar essas organizações próprias?
O.B. - Não; nós queríamos criar. Aliás, a Congregação Libertadora da Terra e do
Homem já era com esse espírito. Nós pregávamos a revolução... A revolução não, a
reforma agrária, o imposto sobre herança - que seria dedicado à compra de terras, que
seriam entregues aos trabalhadores.
M.C. - E quando a Congregação foi fechada?
O.B. - Nós é que a fechamos por que não podíamos mais nos mover. Na cadeia de
Maceió, todo o tempo, um sujeito do lado de fora das grades ficava me olhando. Quando
saí, perguntei: "Quem é esse sujeito?" Disseram: "É o Horato Maurício; é um pistoleiro
político. Tem promessa de ser oficial da Polícia Militar de Alagoas, caso liquide você."
E os amigos diziam: "Não saia de noite. O Horato Maurício está aí de tocaia, esperando
para matá-lo." E, no final, em março, fui preso.
M.C. - Março de que ano?
O.B. - De 1919. Fui preso na cadeia de Maceió.
M.C. - Você foi preso por quê?
O.B. - Porque fui visitar o Rosalvo Guedes. Solidariedade moral. O Rosalvo Guedes foi
preso porque descobriram que foi ele quem mandou imprimir o manifesto. O tipógrafo
denunciou. Mais um manifesto. Então, os amigos me diziam: "Não saia de noite, que o
Horato Maurício liquida você." E o secretário do Interior disse à minha família, ao meu
tio, Manuel: "Não me responsabilizo pela vida de Otávio Brandão." Ele manda matar e,
depois, a família estava avisada... Minha família ficou aterrorizada. Eu não podia mais
me mexer, vivia vigiado pela família, que se opunha que eu partisse. No final, eu
organizei a fuga. Corri para Jaraguá, comprei uma passagem com o nome mudado e
saltei no Rio de Janeiro. A família disse: "Volta." Eu levei 41 anos sem poder voltar.
Escrevi aos amigos: "Eu agüento a cadeia de Maceió e agüento uma surra. [riso] Posso
voltar?" Os amigos diziam: "Não volte. A questão não é de cadeia, nem de surra, é que
liquidam você. Você prejudicou os agentes do imperialismo, com a luta pelo petróleo;
prejudicou a Igreja Católica, explicando a origem da terra alagoana durante milhões e
milhões de anos sem Deus; prejudicou os burgueses, lutando pelo dia de oito horas; e
prejudicou os seus parentes latifundiários, pregando a divisão das terras, a terra ao
trabalhador de enxada. Não volte, não volte." E rolaram 41 anos sem que eu pudesse
voltar.
M.C. - Havia alguma ação organizada por parte dessas forças contra o movimento de
vocês?
O.B. - Sobretudo com a guerra, já houve uma mobilização, porque os Aliados tinham
agentes pagos por toda a parte. Foram eles que organizaram esse comício, que depois
desfilou para liquidar o Canelas. Havia o governo; havia a Igreja Católica, que botava
aqueles artigos: "Maximalismo em Maceió." Pavor, havia um ambiente de pavor. E eu
era considerado o chefe, o dirigente.
M.C. - Havia sindicatos da burguesia em Maceió?
O.B. - Não, não.
M.C. - Eles não eram organizados?
O.B. - Havia a Associação Comercial, que era um centro de reação e de tudo mais. Eram
burgueses muito reacionários e burros, ignorantes até. Muito ignorantes. Tinham medo.
Tinham medo de tudo: medo de Deus, medo do Diabo, do inferno, medo de tudo.
Morriam e deixavam lá no testamento: tantos contos de réis para dizer tantas missas,
para construir uma igreja, para isso e para aquilo.
M.C. - E quando é que vocês fecharam a Congregação Libertadora?
O.B. - Ela morreu em 1919.
M.C. - E o Sindicato de Ofícios Vários também morreu?
O.B. - Bem; a Polícia invadiu, bateu, deu surras de sabre, imagina você! Batendo, assim,
nos operários e fechou aquilo tudo.
M.C. - Também em 1919?
O.B. - Sim; em 1919.
M.C. - E essa invasão foi provocada por algum movimento?
O.B. - Não; nenhum movimento. Então, o ambiente era assim, de pavor, no meio
daquela pequena burguesia e da grande burguesia.
M.C. - Existiam em Maceió organizações operárias ligadas à Igreja Católica?
O.B. - Não; a Igreja só pensou nos operários muito depois. [riso] Antes, ela combatia a
reforma agrária e dizia: "Nada disso. A terra pertence a Deus; ninguém pode tocar na
terra" E uma das razões da condenação da Igreja também foi essa. Eu queria a reforma
agrária, e a Igreja era contra. E a Igreja não pensava nos operários. Os operários,
largados, abandonados. Depois, a Igreja, muito esperta, muito politiqueira, começou a
criar esses sindicatos operários [riso] e, ultimamente, é a maior propagandista da
reforma agrária. Eu digo: "Quem te viu, quem te vê!" [risos]
M.C. - Quais eram os setores mais ativos entre o operariado?
O.B. - Havia alfaiates artesãos, que não eram bem operários, eram alfaiates artesãos;
havia a construção civil; havia um ou outro tecelão; havia empregados no comércio, que
eram muito ativos; havia gráficos, mas estes não se diziam operários: "Eu sou artista."
[riso] Eu achava uma graça enorme e perguntava a eles: "Por que você não é operário?"
Eles me respondiam: "Não; operário é uma categoria inferior. Eu sou artista." [riso]
M.C. - Isso entre os gráficos?
O.B. - Sim; diziam: "Eu sou artista." Não eram operários. Para você ver a mentalidade!
E a lutar contra essas muralhas todas, um pequeno grupo corajoso, bravo. Eu dou os
nomes deles no livro O caminho. Precisava muita coragem, desprendimento, porque,
por exemplo, Rosalvo Guedes passou anos e anos desempregado, passando
necessidades.
M.C. - Não conseguia emprego.
O.B. - É; depois, era o pavor. Encontrei-o, em 1960, magro, envelhecido, doente, um
filho louco. Uma tragédia.
M.C. - Mas você me contou que os comerciários participaram daquele movimento
provocado pelo seu artigo na A Semana Social, ao lado dos estudantes, movimento
contra o Canelas, não é? Agora, você me falou que eles eram um setor bastante ativo,
mas...
O.B. - Empregados no comércio, mas era uma minoria. Ao passo que ali, contra nós,
era uma multidão, mobilizada pelos agentes dos Aliados. Era uma multidão...
M.C. - Quer dizer que desses setores todos...
O.B. - O mais ativo era aquele pequeno grupo de empregados no comércio; o Umbelino
Silva, Faustino de Oliveira, e este outro que eu disse o nome, que foi preso e eu fui
visitá-lo na cadeia... o Rosalvo Guedes, que também era empregado no comércio. Todos
esses eram os mais ativos. O trabalho de Canelas rendeu, espalhou-se, mas o jornal foi
fechado, Canelas foi embora. A penetração no meio dos operários ficou mais difícil,
porque não tínhamos mais um jornal, só um manifesto de tempos em tempos. Ao passo
que com A Semana Social, aquilo ia penetrando nos operários em Maceió.
M.C. - Quer dizer que o Sindicato de Ofícios Vários era pequeno, não é? Era um
sindicato pequeno.
O.B. - Sim; mas num comício que fizemos na sede do outro sindicato, apareceram
tantos trabalhadores, que no final eu falei da janela do sindicato. E o trabalhador ficou
ali. Esse sindicato ficava na praça da cadeia. Eu olhei assim, vi a cadeia e disse: "Mau
negócio. [riso] Nós escolhemos uma sede, que daqui não teremos que caminhar muito
para ir parar na cadeia."
M.C. - E sindicatos amarelos existiam em Maceió?
O.B. - Não; não havia. Bom, parece que havia no cais do porto. Uma vez Oiticica fez
uma conferência lá.

(...)"

Consulta do Conselho Ultramarino (Assassinos de Zumbi)

Retirado do livro : "República de Palmares"
Pesquisa e comentários em documentos
históricos do século XVII - De Décio Freitas.

(http://www.vicosadealagoas.com.br)

Consulta do Conselho Ultramarino
sobre a morte de Zumbi, encaminhada a El-Rei
“Senhor,

O Governador de Pernambuco Caetano de Melo de Castro em carta de 25 de março deste ano dá conta a Vossa Majestade de como se houve a certeza de haver conseguido a morte de Zumbi para nenhuma dúvida se fizesse como tantas vezes sucedeu nos governos anteriores, assim para quietação dos povos como para exemplo dos negros que o julgavam imortal, e para demonstração do que diz envia cópia da ata que fizeram os oficiais da câmara de Porto Calvo, e por ela se vê que o troço das tropas de paulistas em que ia por cabo o Capitão André Furtado de Mendonça que conseguiu a morte do negro no sumidouro que este artificiosamente fizera na Serra dos Dois Irmãos conduziu o corpo à presença dos oficiais da mesma câmara; que se apresentou aos ditos oficiais um corpo pequeno e magro, em cujo exame se viram quinze ferimentos de bala e muitos de lanças vendo-se ainda que o membro da virilidade do dito negro se havia cortado e enfiado na boca também lhe faltando um olho e se lhe cortara a mão direita; que perante os oficiais da câmara juraram as testemunhas pertencer o cadáver ao negro Zumbi, a saber, um cabo maior que se apanhara vivo na companhia do dito, os escravos Francisco e João, o senhor de engenho Antônio Ponto e o lavrador de partido Antônio Soza, que todos haviam conhecido em pessoa o açoite daqueles povos; que se lavrou na ata o reconhecimento do cadáver do negro Zumbi, e que para que se pudesse isso mostrar ao Governador de Pernambuco Caetano de Melo Castro deliberou-se levar ao Recife somente a cabeça pela impossibilidade de levar o corpo todo; que no pátio da câmara, presentes todos os oficiais, um negro decepou a cabeça a qual se salgou com sal fino, o que tudo se fez constar na mesma ata; que assim pôde ele Governador Caetano de Melo de Castro à vista da cabeça e da ata da câmara ter a certeza da morte do negro que tantos danos fizera à Real Fazenda e aos moradores das Capitanias de Pernambuco.

Ao Conselho parecer fazer presente a Vossa Majestade o que escreve o Governador de Pernambuco Caetano de Melo de Castro de se haver morto ao negro Zumbi, o que Vossa Majestade deve mandar agradecer ao dito Governador o bem que neste particular e nos mais do serviço de Vossa Majestade se há havido. Lisboa, 2 de setembro de 1696.

(a) Conde de Avelar
(a) João de Sepúlveda e Matos
(a) José de Freitas Serrão

Como parece, 13 de setembro de 696. (Rubrica) / na folha 1 R/’


Capítulo 43, A cabeça de Zumbi

De Riacho do Meio a Viçosa de Alagoas (Sidney Wanderley)

Conheça Viçosa a partir do livro De Riacho do Meio a Viçosa de Alagoas, o “abecedário mínimo da povoação” da cidade.
Por Sidney Wanderley.

(http://www.vicosadealagoas.com.br)
Assembléia

Antiga denominação da atual cidade de Viçosa (AL), que vigorou de 1831 a 1890 e de 1943 a 1949.

Outrora era bastante comum a reunião dos habitantes da povoação para, às cinco da tarde e em suas calçadas, discutirem o estado da lavoura, “resolverem” os problemas da Nação e, sobretudo, para divagarem apaixonadamente acerca das vidas alheias.

Vezes muitas, vindos dos sítios para a compra ou venda de cereais, juntavam-se aos habituais freqüentadores das reuniões os rurícolas, com sua ingênua curiosidade e sua tradicional discrição – ouvidos atentos, bocas cerradas.

Dizia-se então que constituíam uma assembléia.

Possuíam tais assembléias infinito poder de deliberação sobre as vidas dos conterrâneos. Assim, a virgindade duma adolescente ou a sanidade mental de qualquer indivíduo dependiam menos dum atestado médico que do “humor crepuscular” de algum integrante da patota.

Com o recente advento da televisão na província, tais assembléias sofreram mudança temporal e geográfica: passaram a realizar-se à noite, sempre em torno dos aparelhos de TV e apenas durante os comerciais das telenovelas. Nem tudo mudou, entanto. Comenta-se o destino do vilão da novela das oito com o mesmo entusiasmo e idêntica maledicência com que se trata do nebuloso passado de algum concidadão pouco querido.

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Nas calçadas, urbanos e rurícolas constituem a “assembléia”.
Foto de 1919.












Branquinha

Apelido carinhoso da cachaça. O mesmo que azuladinha, birita ou água-que-passarinho-não-bebe.

Em Viçosa, a quantidade dos amantes da aguardente só é superada pelo número de vítimas da xistose. Sofre nos tempos atuais grande concorrência por parte da “lourinha”, inclusive nos segmentos de mais baixa renda da população.

Vale ressaltar que os devotos da cachaça mantêm uma atitude cética e superior quando se deparam com uma tentadora garrafa de cerveja. Jorginho Bêbado, vítima fatal da cirrose e alcoólatra-maior da província, quando em vida sentenciou categórico: - A cerveja é o mijo do Diabo. Só que engarrafado e bem geladinho.

Relata a sapiência popular que a mistura da pólvora com a cachaça provoca a coragem em quem dispuser de suficiente coragem para ingerir tão estranha mistura. Coragem para guerrear, para duelar, para aniquilar o inimigo.

Aqui na terrinha é costume separarem-se os ingredientes. O derrotado prova da pólvora ou chumbo grosso e converte-se em defunto, migrando para a indesejada terra dos pés juntos; o vitorioso prova da cachaça e, em ato festivo, financia a bebedeira para os inúmeros espectadores do duelo, o que, por vezes, transforma a morte em algo mais aconselhável – porque menos dispendioso – que a preservação da própria vida.

O Trovador Berrante e o Bar do Zézo na praça Apolinário Rebelo, a Toca do Veio e o Bar do Relógio na avenida Firmino Maia são, nos dias atuais, os pontos de encontro dos boêmios viçosenses que trabalham (nos copos) pelas noites e madrugadas e hibernam (pelas calçadas e camas) enquanto reina o sol.

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Cemitério

De início não havia cemitério na cidade, sendo os mortos enterrados na Matriz, na igrejinha do Rosário e nos arredores da atual praça Apolinário Rebelo.
O gradativo aumento da população e a ocorrência da terrível epidemia de cólera em 1856, causando inúmeras mortes entre os munícipes, tornaram evidente a necessidade da construção de um cemitério, o que foi feito de forma provisória ao final da rua do Joazeiro (atual Frederico Maia), erguendo-se um de paliçada onde hoje funciona o Grupo Escolar 13 de Outubro.

A construção do atual e definitivo cemitério de Viçosa deu-se em 1890, com a vinda do frei Cassiano de Camachio, capuchino do convento da Penha no Recife, convidado que foi pelo vigário Loureiro para aqui missionar e erigir o cemitério.

Com a notícia das missões começou o povo a afluir não só do município de Viçosa, bem como dos municípios limítrofes. Para erigir o cemitério no alto do morro onde se acha hoje instalado, e em menos de quarenta dias, frei Cassiano utilizou-se de um hábil estratagema: recomendou aos fiéis que expiassem suas culpas e pecados, não com padre-nossos e ave-marias, mas transportando pesadas pedras através da íngreme ladeira que separava a parte baixa da cidade do ápice do morro em que desejava instaurar a nova “mansão dos mortos”.

O historiador Alfredo Brandão, em seu livro Viçosa de Alagoas, editado no Recife em 1914, nos informa a respeito: “Recordo-me que numa tarde eu e meu pai nos dirigíamos para a Viçosa. Quando chegamos no alto da Ladeira Vermelha, onde toda a vila se descortina, paramos extasiados, como se tivéssemos diante de nós algum Cosmorama oriental: uma compacta multidão movediça, enchendo a praça e as ruas, formava um longo cordão que subindo o monte pelo lado da (antiga) cadeia, ia até o cume onde se estava construindo o cemitério. O sol poente, batendo em cheio nesse formigueiro humano, fazia ressaltar as variegadas cores dos trajes e dava a todo o conjunto, visto assim de longe, um aspecto quase fantástico. Através das ruas mal se podia marchar, tal era a quantidade de gente que fervilhava, conduzindo pedras, cal, barro e areia para o cemitério. Nesse mister empregavam-se não só os homens válidos, como também os velhos, as mulheres e as crianças, cada um na quantidade de suas forças”.

Quem já teve a pesada incumbência de transportar um defunto da parte baixa da cidade para o alto do morro do cemitério, deve reter bem em sua memória o quanto isto o debilitou. Quem agora teve a ofertada possibilidade de conhecer a história da construção do atual cemitério de Viçosa, que guarde bem em sua memória do quanto é capaz a esperteza dos freis Camachios e a ingenuidade dos beatos.

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A avenida Firmino Maia em 1912: sem bares, só matagal. Ao alto, o cemitério (seta)





Dois Irmãos

É a serra dos Dois Irmãos o ponto culminante do município, atingindo cerca de 400 metros de altura. Seu nome deriva de seus cabeços mais importantes – os Dois Irmãos, separados entre si pela cachoeira do rio Paraíba e que se situam na divisa entre os municípios de Viçosa e Cajueiro (antigo distrito de Capela). Constituem-se em atração turística natural, distantes 8 Km da sede municipal e entrecortados pela via férrea.

O historiador Alfredo Brandão criou, em 1900, uma bela “estória” para “explicar” a gênese dos Dois Irmãos – a lenda de Inhamunhá, a meiga e sedutora iara que teria cometido o suicídio (convertendo-se após a morte na cachoeira do Paraíba) para evitar o combate de morte entre os irmãos guerreiros e indígenas Pirauê e Pirauá, desejosos de desposá-la. Enlouquecidos com o trágico desaparecimento da pretendida, os dois irmãos, possuídos por infinita melancolia, acabaram por transformar-se em gigantescas pedras que são hoje a serra dos Dois Irmãos.

O bairrismo exacerbado de alguns munícipes deseja, a todo custo, que Pedro Álvares Cabral tenha avistado os cumes dos morros ora em enfoque, e não – como a História ensina – o monte Pascoal, na Bahia. Em outras palavras: o descobrimento do Brasil ocorreu em alguma das verdes margens do rio Paraíba, onde certamente Cabral teria aportado com sua esquadra – hipótese muito simpática e nada provável.

O certo e indiscutível é que a serra dos Dois Irmãos serviu de refúgio e esconderijo para o heróico Zumbi e seus sequazes, fato este comprovado através de minuciosas pesquisas empreendidas por Alfredo Brandão e constantes em seu livro Viçosa de Alagoas. Ou nas palavras do historiador: “Não é pois de admirar que o Zumbi se tivesse refugiado a princípio no Sabalangá e mais tarde na serra que lhe fica próxima – a serra dos Dois Irmãos – a qual, por causa dos seus desfiladeiros, seus penhascos abruptos e suas gargantas profundas, por uma das quais se precipita o Paraíba, poderia oferecer todas as condições de estratégia e resistência”.

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Emancipação Política

A exemplo da emancipação política de Alagoas, a desanexacão do município de Viçosa dos domínios de Atalaia efetivou-se sem para isso se fizesse necessária a existência de heróis, batalhas, vítimas e conspirações. Nem sequer um tiro foi disparado. Nenhuma palavra de ordem libertária ecoou nas ruas da cidade. Inexistiram bandos armados a trotarem sorrateiros pelas matas e morros do município. Enfim, tudo na mais perfeita paz.

A 13 de outubro de 1831 um decreto imperial criava as vilas de Imperatriz (atual União dos Palmares) e Assembléia (atual Vicosa). Rezava o decreto em seu artigo 1o.:

"Ficarão creadas duas villas desmembradas da villa de Atalaia, uma ao norte e pela margem do rio Mundahú, no lugar da Camaratuba; sua capital a povoação do Macaco; seu território comprehendido nas povoações do - Macaco - Lage do Canhôto - Juçara – Cabeça de Porco - Murici e Branquinha.; - outra ao norte do rio Parahyba e no lugar Riacho do Meio; sua capital a povoação do mesmo nome; seu território o comprehendido nas povoações – Riacho do Meio - Lourenço - Passage - Quebrangulo - Cassamba e Limoeiro - comprehendendo os juízes de paz das capellas filiaes das mencionadas povoações; sua denominação – Villa Nova da Assembléia".

Mais balas foram gastas na comemoração que na conquista da independência política da Vila Nova de Assembléia: uma salva de vinte e um tiros causou susto e inquietação em seus pacatos e ordeiros habitantes.

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Por decreto imperial, a povoação do Riacho do Meio converte-se em Vila Nova de Assembléia (1831).















Duas hipóteses podem ser levantadas: a existência ou a inexistência de Deus. Com a rala exceção de três almas penadas, duramente reprimidas pela grande maioria dos fiéis e tidas na conta de atéias, a cidade se manifesta em favor da primeira hipótese.

Quanto à existência de Satanás, apenas o cônego opina de forma negativa. Os ateus - inclusive - somam-se aos fiéis para assegurar a existência do Tinhoso. Os sobradões que rodeiam a praça Apolinário Rebelo são tidos na conta de mal-assombrados e, conforme crença popular, tratam-se das habitações preferidas de Satanás seu horário comercial, ou seja, da meia-noite às quatro da manhã.

Os padres de antanho rejeitavam a hipótese da presença de Lúcifer nos sobradões da praça, preferindo detectá-lo nas tentacoes carnais e na mudança de costumes processada no início do século. Graciliano Ramos, que aqui viveu de 1899 a 1906, anotou numa crônica pertencente a Viventes das Alagoas:

“A cidade tem uns cinco mil habitantes. Contando bem, talvez achássemos seis mil, número que os naturais, bairristas em excesso, duplicam. . . Faz trinta anos que S. Revma. profere no púlpito, com ligeiras variantes, o mesmo sermão, ataque feroz ao mundo, à carne e ao diabo, férteis em tentações não especificadas. Prudente, S. Revma. impugna o exterior do mal. Acusou as primeiras mulheres que vestiram calças e montaram a cavalo de frente, escanchadas, como os homens, mas este indício de perdição vulgarizou-se rapidamente, os silhões e o costume de cavalgar de banda caíram em desprestígio - e o Vigário passou a denunciar outras manhas dos inimigos da alma. Agrediu as saias curtas das moças e os braços descobertos. Ante a resistência foi inexorável: esbaforiu-se e enrouqueceu depois da missa, usou argumentos rijos e, no batismo, afastou da pia as madrinhas não inteiramente agasalhadas. Recusou desculpas, triunfou. Idoso e de óculos, enxerga sem dificuldade os colos expostos. E julga que alguns centímetros de pele nua ocasionam prejuízo sério à cristã".

Para sufragar as almas do purgatório, os fiéis utilizavam-se de uma cerimônia religiosa denominada Banquete das Almas e que consistia em orações, missas, comunhões etc. O Jornal de Viçosa nos fornece dados acerca de um Banquete das Almas efetivado em setembro de 1929:

"O resultado do Banquete foi altamente satisfatório. Ei-Io: 1 missa celebrada, 250 comunhões, 30 comunhões espirituais, 449visitas ao S. Sacramento, 12.809 rosários, 2.349 terços, 677 mortificações, 176 ofícios, 1.005 coroas, 1.048 padre-nossos, 1.988 salve-rainhas, 447 visitas a Nossa Senhora, 100 visitas a outros santos, 50.000 jaculatórias, 193 missas ouvidas, 58 salmos, 545 ladainhas e 5 comunhões reparadoras.

"O Revmo. Sr. vigário Pe. Cândido Machado, muito satisfeito com o resultado exposto, se congratula com todos os fiéis que concorreram para a realização dessa cerimônia e recomenda que todos continuem a rezar e a pedir pelas almas do purgatório". (Jornal de Viçosa, 20 de outubro de 1929.)

Os cultos protestantes e as crenças de origem africana, não tendo almas suficientes para a realização de tão majestoso "banquete", nem por isso deixaram de sentar-se às suas mesas e de se refestelar com o modesto almoço espiritual que suas forças Ihes permitiam.

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Gurganema

Uma das mais antigas ruas da cidade, hoje denominada Tibúrcio Nemésio. Iniciando-se ao final da praça Apolinário Rebelo, esta artéria se estende entre a base do morro do cemitério e a margem esquerda do rio Paraíba. Nela se localizam os fogueteiros da cidade, além do prédio onde outrora funcionou o célebre e celebrado cabaré Cabeça de Boi.

Esta rua caracterizava-se em tempos passados pela permanente realização de farras e batuques. O primeiro vigário de Viçosa, Manoel Joaquim da Costa, pouco afeito a barulho e malandragem, batizou-a com o estranho vocábulo Gurganema. Trata-se de uma corruptela de cururupanema ou curupanema, que se desdobra em cururu – sapo e nema – podre. Portanto, a atual Tibúrcio Nemésio foi, até bem pouco, a rua do Sapo Podre.

Os moradores do Sapo Podre, irados com o vigário e atentos à sua lerdeza, apelidaram-no apropriadamente de Mane Mole. Justa vingança.

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Gurganema:
a rua do Sapo Podre.






Hagiografia

Morto o padre Manoel Joaquim da Costa (vulgo Mané Mole) - vigário da Paróquia de 1835 a 1848 -, em 1849 Viçosa ganhou o seu segundo pároco. Tratava-se de Francisco Manoel da Silva, a quem o povo, por insabidas razões, alcunhou de Padre Cabrites.

Com o fito de catequizar as almas hereges e manter viva a fé em Cristo naqueles que já a possuíam, Cabrites fincou pé e cruz na província. E aqui pôs-se a orar e trabalhar. E orou e trabalhou por longos trinta e sete anos, pois que só com sua morte - em 1886 é que se entregou ao luxo do cochilo eterno e definitivo.

Ficou conhecido na cidade o seu Sermão da Laranja. No púlpito e em alta voz, o padre afirmava que se dispuséssemos em nossas mãos de uma laranja e tivéssemos que repartí-la com nosso melhor amigo, necessariamente deveríamos ficar com a banda mais doce para nosso consumo e fornecer a parte mais amarga (ou menos adocicada) para nosso amigo predileto. E justificava: Deus ensina no Primeiro Mandamento a amar o próximo como a nós mesmos; nunca amar o próximo mais que a nós mesmos. E querer ser melhor que o próprio Deus é empreitada digna apenas dos amantes de Lúcifer.

Já idoso, o padre Cabrites era tido na conta de santo por inúmeras beatas que lhe invadiam a casa e, muitas vezes, a própria alcova. Dele, conta-se que ao fim da vida possuía seis amásias e doze ou quatorze guris, todos – elas e eles – possuidores da mais rígida e irrepreensível formação religiosa. Certa feita, questionado pelo bispo acerca de seus métodos nada ortodoxos, na disseminação da fé católica, padre Cabrites teria rebatido:

- Cada qual com suas maneiras, meu caro bispo. O senhor com suas sábias palavras, eu com minhas ações generosas. E, ademais, nem só de almas e de verbo vive o Senhor.

Francisco Manoel da Silva – o padre Cabrites – foi substituído após morrer pelo padre Francisco da Borja Loureiro – o Vigário Loureiro -, que, em início do século XX tentaria, infrutiferamente, manter nos domínios da fé o espírito do então coroinha e futuro romancista Graciliano Ramos.

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A Matriz
do Senhor do Bomfim, onde Graciliano Ramos foi coroinha e aprendeu com a fé as vantagens do ateísmo.


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Indígenas

Foram os habitantes primitivos do município.

Em meados do século XVI, após desentender- se com o filho do segundo governador-geral do Brasil - D. Duarte da Costa, o primeiro bispo do Brasil (D. Pero Fernandes Sardinha) aboletou-se num navio e zarpou para Portugal. Em litoral alagoano a embarcação desistiu da viagem e soçobrou, morrendo afogada a maior parte de seus tripulantes.

Alguns felizardos, nadando com fé e obstinação, conseguiram chegar com vida a terra firme. Entre eles, D. Pero Fernandes Sardinha. Não estavam num dia de sorte, porém.

Mal chegados ao solo alagoano, foram imediatamente aprisionados pelos temíveis (índios caetés, que, entre outros hábitos estranhos e pouco recomendáveis, cultivavam a antropofagia. Tiveram suas cabeças esmagadas pelos tacapes e seus corpos digeridos pela fome indígena. Um lauto banquete, diga-se de passagem.

Após a matança do bispo, os portugueses aliados aos índios tabajaras decretaram guerra de morte aos caetés. Estes, numérica e logisticamente inferiores, foram praticamente dizimados em batalhas que se prolongaram pela segunda metade do século XVI.

Os poucos caetés sobreviventes embrenharam-se pelo sertão e, após a extinção dos quilombos, começaram a repovoar a Zona da Mata alagoana.

É ainda (e sempre) o historiador Alfredo Brandão quem nos socorre:

"Sendo os Caetés divididos em muitas sub-tribos, procurei saber qual o ramo que havia habitado a Viçosa e cheguei a conclusão que tinha sido o dos Caambembes, ou mais simplesmente Cambembes, índios que escaparam ao estudo dos investigadores e de cuja existência tive notícia por meio de reminiscências vagas, disseminadas ainda hoje entre os habitantes do local”.

“O vocábulo cambembe serve hoje na Viçosa para designar o povo baixo do campo. Tal designação é recebida quase como uma afronta, vendo-se portanto que ela pertenceu a uma raça que se degradou. Segundo penso, a palavra cambembe é uma corruptela de caamemby, vocábulo indígena que se decompõe em caa – mato e memby – flauta, gaita ou buzina. Literalmente a tradução será: mato de gaitas, de buzinas ou de flautas. Desta etimologia depreendo que os Cambembes deviam ser um povo amigo da música. É bem possível que haja alguma identidade desses índios com os bardos dos Caetés, os quais conforme relata Ferdinand Diniz, acompanhavam os guerreiros nas pelejas, incitando-os com os seus cantos. Ainda hoje entre os caboclos descendentes dos Cambembes, encontram-se exímios tocadores de pífano”.

No início do século XIX, quando Viçosa (então Riacho do Meio) não contava sequer com quinhentas almas, os cambembes vieram a constituir a classe proletária que trabalhava assalariada nos roçados de algodão e nas engenhocas dos proprietários de terras. Daí o acertado registro do dicionarista Aurélio Buarque de Holanda: “Cambembe. Bras., AL. No município de Viçosa, pessoa humilde que mora no campo”.

Daí também o motivo de propriedades e povoações possuírem denominações tais como Porangaba, Pindoba, Pirauás, Tangil, Gereba, Caramatuba, entre muitas outras similares.

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Jornalecos

Nascido em Quebrangulo (AL) a 27 de outubro de 1892 e tendo vivido até os sete anos na vila de Buíque, no vizinho estado de Pernambuco, já em 1899 a criança Graciliano Ramos aportava em Viçosa – “cidadezinha do país das Alagoas / terra de tanta coisa ruim / terra de tanta coisa boa”, no exato dizer do falecido folclorista Théo Brandão.

Sebastião Ramos, pai do romancista, intalou-se no comércio local com uma loja de tecidos, miudezas e ferragens situada na parte térrea do principal sobrado da praça Apolinário Rebelo – àquela época, praça do Comércio.

De início, a família fixou residência numa casa próxima à antiga cadeia, na rua do Joazeiro (atual Frederico Maia), mudando-se posteriormente para a rua da Matriz, quando então Graciliano se fez amigo dos filhos do farmacêutico Mota Lima – um dos quais, Pedro da Mota Lima, tornar-se-ia um dos grandes jornalistas brasileiros, e faria brilhante carreira nos jornais cariocas.

Em Infância,Graciliano relembra sem muitas saudades esses tempos: "Aos nove anos, eu era quase analfabeto. E achava-me inferior aos Mota Lima, nossos vizinhos, muito inferior, construído de maneira diversa. Esses garotos, felizes, para mim eram perfeitos: andavam limpos, riam alto, frequentavam escola decente e possuíam máquinas que rodavam na calçada como trens. Eu vestia roupas ordinárias, usava tamancos, enlameava-me no quintal, engenhando bonecos de barro...”.

Por esse tempo, o futuro romancista freqüentava a escola primária de dona Maria do O, onde percebeu com rapidez a diferença de tratamento que as professoras primárias dispensavam aos filhos dos coronéis e aos filhos dos destituídos de poder e prestígio na comunidade. E, não poucas vezes, suas mãos receberam o áspero e indesejado afago da palmatória, método didático muito apreciado no início do século. “O lugar de estudo era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma crucificação... Não há prisão pior que uma escola primária do interior”. (Infância)

Aos domingos, o futuro ateu e militante comunista ajudava desajeitadamente ao padre Loureiro, durante a celebração da missa. E no tempo que lhe sobrava, o menino lia sofregamente romances de terceira e quarta qualidade...

Em 1904, sofrendo bem mais as influências literárias que geográficas do seu professor de Geografia – a exótica figura do poeta Mário Venâncio – Graciliano, ao lado de seu primo Cícero Ramos, fundaria um periódico intitulado O Dilúculo, com tiragem quinzenal de duzentos exemplares e divulgação restrita à província viçosense.

No número de estréia do jornaleco, o pseudônimo Ramos Oliveira (R.O.) assinava as primeiras linhas que mestre Graça fez publicar. Artigo fraco, miúdo, chinfrim, como o próprio autor mais tarde o definiria. Mas perdoável para uma criança de onze anos, criada entre “dois currais, o chiqueiro das cabras, meninos e cachorros numerosos soltos no pátio, cobras em quantidade”, tabefes paternos, cascudos maternos, indiferença e desprezo dos familiares. E, sobretudo, artigo já revelador de uma simpatia compreensiva e de uma sensibilidade aguçada para com o sofrimento e a miséria dos oprimidos terrenos, sensibilidade esta que se converteria na viga mestra e sustentadora de uma de suas futuras obras-primas – Vidas Secas (1938).

O escrito intitulava-se “O Pequeno Pedinte” e, posteriormente, no autobiográfico Infância, Graciliano se eximiria de parte dos pecados acaso cometidos em sua infância literária, atribuindo-os ao já citado poeta e professor Mário Venâncio:

"O Pequeno Mendigo (sic) e várias artes minhas lançadas no Dilúculo saíram com tantos arrebiques e interpolações, que do original pouco se salvou. Envergonhava-me lendo esses excessos do nosso professor: toda a gente compreenderia o embuste".

Segue-se o meloso artigo, datado de 24 de junho de 1904, e que sequer nos permite imaginar o escritor substantivo em que R. O. se converteria.

O PEQUENO PEDINTE

"Tinha oito anos!
"A pobrezinha da criança sem pai nem mãe, que vagava pelas ruas da cidade pedindo esmolas aos transeuntes caridosos, tinha oito anos.
"Oh! Não ter um seio de mãe para afogar o pranto que existe no seu coração!
"Pobre pequeno mendigo!
"Quantas noites não passara dormindo pelas calçadas exposto ao frio e à chuva, sem o abrigo do teto.
"Quantas vergonhas não passara quando, ao estender a pequenina mão, só recebia a indiferença e o motejo!
"Oh! Encontram-se muitos corações brutos e insensíveis!
"É domingo.
"O pequeno está à porta da igreja, pedindo, com o coração amargurado, que lhe dêem uma esmola pelo amor de Deus.
"Diversos indivíduos demoram-se para depositar uma pequena moeda na mão que se Ihes está estendida.
"Terminada a missa, volta quase alegre, porque sabe que naquele dia não passará fome.
"Depois vêm os dias, os meses, os anos, cresce e paga a vida, enfim, sem tragar outro pão a não ser o negro pão amassado com o fel da caridade fingida".

Em toda a sua futura obra, creio que Graciliano não chegou a usar tantos adjetivos pomposos e tantas interjeições dispensáveis como neste escrito inicial.

Pouco tempo depois, inconsolável com um amor impossível e com uma amada inatingível, o poeta Mário Venâncio cometeria o suicídio - poucos dias antes do 16 de fevereiro de 1906, data em que o segundo e último número do segundo e último jornal que Graciliano fundou na província - Echo Viçosense - ia a público.

Tiveram vida efêmera as tentativas jornalísticas de mestre Graça na terrinha. Mas a previsão do suicida Mário Venâncio se confirmaria: Graciliano Ramos seria romancista. Mas – acrescente-se – de um estilo oposto ao do ídolo de Venâncio, o escritor Coelho Neto. À verborragia de Coelho Neto, mestre Graça haveria de contrapor sua prosa enxuta e substantiva, nordestina e universal; ao palavreado adiposo de Coelho Neto, Graciliano responderia com sua linguagem esquelética, falando sempre “com as mesmas vinte palavras”, no exato dizer do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto.

E a cidadezinha de Viçosa, na Zona da Mata alagoana, ficaria retida ainda por um bom tempo na memória graciliânica. Tanto que lhe forneceu o anti-herói Paulo Honório e algumas outras figuras humanas que povoariam as páginas de São Bernardo, três décadas mais tarde.

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Rua da Matriz, 25: casa onde morou Graciliano Ramos.







































































Louvação

Foi o poema que segue, escrito por mim para (e lido pelo autor durante) o programa que a Rádio França internacional, sediada em Paris, dedicou a Teotônio Vilela uma semana antes do seu falecimento, a 20 de novembro de 1983. Intitulado “Breve Poema em Louvor do Pássaro Teotônio”, o tributo segmenta-se em:

1- DO POETA PARA O POVO

Eu hoje quero, à noite, conversar
com um pássaro conterrâneo que conheço,
dizer-lhe dos meus medos brasileiros
ante as aves de rapina que espreitam
este solo e este povo defendidos
por armas que Ihes miram os próprios peitos.

Eu hoje quero, à noite, abraçar
um pássaro conterrâneo que admiro,
um pássaro que não cante em gaiolas e florestas,
que canta no Senado e nas prisões, que trina
em greves, comícios, protestos, passeatas, procissões,
e quando canta este uirapuru urbano
os pássaros menores fecham o bico e abrem os tímpanos
para sorverem, em largos goles, o som mavioso
que exalam sua voz e sua palavra.

Eu hoje quero, à noite, cantar junto
a um pássaro conterrâneo que cultivo,
até que a noite cesse e o dia surja
trazendo sol para os olhos, pão para as bocas
e afago para os lombos dos viventes;
cantar ao lado dele porque belo é cantar junto
quando duas são as bocas e o canto se faz único;
cantar ao lado dele para dizer-lhe
quão belo em seu canto é o vocábulo pátria
- vestido de coração e despido de basbaquice -,
como contar-lhe de meus sonhos brasileiros
que um dia – creio – hão de ganhar
carne, sangue e concreto.

Eu hoje quero, à noite, simplesmente
Agradecer em nome do seu povo
a um pássaro conterrâneo que conheço
e que se intitula: Teotônio.

II – DO POETA PARA O PÁSSARO

Agora que a noite já vai alta
e que o povo deste solo sonha em sono,
agora que só bêbados, prostitutas,
policiais e sonâmbulos se locomovem
pelos bares e boates do país,
agora que estamos frente a frente
e que tudo mais é só silêncio,

agora eu agradeço para sempre
a ti, que
com o tempo aprendeste o verbo povo,
substantivo maior de nossas vidas;
agora eu aperto as mãos trêmulas
de ti, que
com o câncer ensinaste a todos nós
o quanto de poesia encerra a morte;

agora eu miro os serenos olhos
daquele que
de Deus - em quem não creio –
herdou a voz, o prefixo e a grandeza;

agora que tu dormes calmamente
e a manhã, tímida, já se anuncia,
como um pai (chorando) ao filho
eu te confesso:

doce será aos filhos desta pátria
soltar teu nome preso nas gargantas,
doce será aos herdeiros deste tempo
reter na memória teu espírito guerreiro,
doce será dizer-se Teotônio,
como dizer-se liberdade
aurora
Brasil
Justiça
vôo.

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O pífano da zabumba, preservação no tempo das gaitas e flautas cambembes e caetés.






















































Manoel Francisco

O fundador da povoação do Riacho do Meio (atual Viçosa).

Em 1790, por ordem do ouvidor José de Mendonça de Matos Moreira, estabeleceu residência no sítio Riacho do Meio, com a finalidade de aí experimentar a cultura do algodão.

Chegando ao local, fez um roçado no vale em que hoje se encontra a praça Apolinário Rebelo (antiga praça do Comércio) e, logo depois, erigiu uma capela de madeira no ponto em que atualmente existe a igrejinha de Nossa Senhora do Rosário.

Com o passar do tempo, várias casas foram sendo construídas ao lado esquerdo da igrejinha, todas elas de madeira. De diversos pontos do município, sobretudo do Sabalangá e da Mata Escura, começaram a afluir moradores para o Riacho do Meio. Esses moradores eram descendentes, não apenas dos paulistas, mas ainda dos negros quilombolas e dos índios que tinham vindo com Domingos Jorge Velho, o responsável pela expedição que desbaratou os quilombos de Palmares, em 1694. Elementos estranhos, vindos de outros municípios, principalmente Marechal Deodoro e Santa Luzia do Norte, ajudaram para o povoamento do Riacho do Meio, bem como portugueses perseguidos durante a guerra da Independência, os quais originaram as famílias Vilela, Vital dos Santos, Vasconcelos Teixeira e Loureiro.

Em 1880, noventa anos após a fundação, o Riacho do Meio possuía, além da praça Apolinário Rebelo, as ruas da Lama e do Joazeiro (atual Frederico Maia), a do Gurganema, a do Rosário, a da Palha, a da Matriz, a do Cochicho e a atual Vigário Loureiro (então Rua do Beco) ainda em formação. Depois da rua do Beco havia vários casebres de palha até o meio de uma várzea, onde se erguia uma frondosa canafístula, que, posteriormente, deu nome à rua que aí se formou. Onde era a "Canafístula", existem hoje a Padre Elói, a Praça Izidro Vasconcelos e parte da Mota Lima. A atual Clodoaldo da Fonseca, nos fins do século passado, não passava de uma avenida de mulungus, cortada pelo riacho do Meio. Durante muitos anos, foi conhecida por rua do Calçamento, devido a um calçamento de pedras brutas que aí existiu. Da atual avenida Firmino Maia não existia sequer notícia. Contava então o município com cerca de 25.000 habitantes, 2.000 dos quais constituindo a população escrava.

Em 1890, cem anos após sua fundação, o povoamento praticamente duplicaria em extensão, devendo-se creditar tal crescimento à chegada da via férrea em Viçosa, o que provocou a repentina multiplicação dos descaroçadores de algodão e dos engenhos de açúcar - os dois produtos basilares da economia municipal.

Manoel Francisco - o fundador do Riacho do Meio, atual Viçosa - faleceu, já octogenário, em 1839, numa situação de extrema pobreza, situação esta idêntica à da grande maioria de seus descendentes e conterrâneos de hoje.

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Usina Boa Sorte, boa sorte
só no nome: ontem açúcar,
hoje escombros.

























Nostalgia

Ou melancolia misturada à saudade dos tempos que não tornam mais e, contudo, persistem íntegros e inarredáveis em nossa memória.

Tempos em que a “lógica popular” se impunha quando do batismo de uma rua. Em que as ruas e praças possuíam o nome de árvores, de flores, de sentimentos puros ou mesquinhos porém autênticos, de prédios ou fatos marcantes, de detalhes pungentes ou pitorescos que, por merecimento, guardavam-se através dos anos na lembrança de seus habitantes. Tempos em que os logradouros rejeitavam os nomes pomposos de figurões de mérito duvidoso e que nada ou pouco tinham a ver com a existência da cidade e a melhoria das condições de vida de seu povo.

Viçosa de ontem: Rua do Pão Sem Miolo (denominação devida à existência nesse local de uma cajazeira com o tronco carcomido pelo cupim – tronco sem miolo), Rua dos Cochichos (porque sempre foi abrigo de intrigas e mexericos), Rua da Matriz (igreja do padroeiro no local), Rua da Linha (cortada ao meio, desde dezembro de 1891 – chegada Great Western em Viçosa – pela via férrea), Rua dos Três Toes (por três tostões as prostitutas aí se entregavam generosamente ao amor), Rua do Beco (por ser exageradamente estreita), Rua do Passarinho (aí ocorria o comércio de pássaros), rua do Brejo, Rua da Palha, Rua do Joazeiro, Rua do Gurganema, Rua da Bela Rosa etc.

Peço à prosa uma pausa pois que pretendo perder-me um pouco nas paragens da poesia. E que o leitor, por prazer ou por favor, seja-me companheiro neste meu (poema) ITINERÁRIO:

Nasci na Rua do Beco,
caí na Rua da Lama,
colhi-me na Rua do Cravo,
flagrei-me na Rua do Banho,
banhei-me na Rua da Bica,
mendiguei na dos Três Toes,
fofoquei na dos Cochichos,
atirei na das Pedrinhas,
xinguei todos do Palhiço,
apanhei na do Cacete,
comi na Pão Sem Miolo,
segui a Rua da Linha,
cheguei à Estrada Nova,
deitei na do Joazeiro,
cobri-me com a Bela Rosa,
dormi na Rua do Brejo
e sonhei este poema
na Rua do Passarinho,
que voou bem de mansinho
pra ruas não batizadas,
onde a poesia, impotente,
faz do silêncio a palavra.

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Great Western, hoje R.F.F.S.A.: ontem passageiros,
hoje trens de carga.



























Octávio Brandão

Nasceu em Viçosa no ano de 1896.

Viveu em Alagoas e Pernambuco até o ano de 1919, onde colaborou com os jornais do interior e das capitais publicando comentários políticos e incontáveis sonetos, além de empreender sucessivas incursões pelos municípios de seu estado natal estudando-lhes a flora, a fauna, os aspectos geológicos e mineralógicos, bem como as relações sociais. Coligiu seus numerosos apontamentos num volume maçudo e um tanto caótico sob o título “Canais e Lagoas”, publicado em 1919.

Foi, ao lado de Oscar Cordeiro e Monteiro Lobato, um dos grandes pioneiros do petróleo brasileiro, tendo sofrido sucessivas perseguições e ameaças de morte por parte de indivíduos a serviço dos trustes estrangeiros.

Sob a influência de Antonio Bernardo Canellas – fundador em Viçosa do jornal Tribuna do Povo (1917) – fez-se anarquista até 1922, ano em que, já morando no Rio de Janeiro e exercendo a profissão de farmacêutico, converteu-se ao comunismo, tornou-se membro do recém-fundado Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, a partir de 1925, fundador e diretor do jornal A Classe Operária. Seu artigo “Agrarismo e Industrialismo: ensaio marxista-leninista sobre a revolta de São Paulo e guerra de classes no Brasil”, datado de 1926, teve grande influência na formação teórica dos militantes do PCB até o final da década de 30.

Autor dos livros “Canais e Lagoas” (1919), “O Caminho” (1950), “O Niilista Machado de Assis” (1958) e “combates e Batalhas (1978), em 1966, quando completou setenta anos, foi-lhe dedicada uma emissão especial pela Rádio Moscou, anunciando-se na ocasião que Lênin recebera e lera os seus trabalhos iniciais.

Tendo vivido por quinze anos na União Soviética e nos leste europeu, este batalhador incansável das causas populares retornou ao Brasil com a queda de Getúlio Vargas em 1946. Aqui viveu quase sempre de forma clandestina, tendo por inúmeras vezes sofrido prisão e perseguição política, até seu falecimento no Rio de Janeiro, em estado de quase absoluta miséria, em março de 1980.

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Octavio Brandão (em foto de 1921, com a esposa Laura): ótimo militante, bom companheiro, mau sonetista.




Paraíba

É, em extensão, o maior rio de Alagoas depois do São Francisco e do Mundaú. Da origem até a foz possui 30 léguas de curso.

Nascendo na serra do Gigante, município de Bom Conselho (PE), atravessa o estado de Alagoas do oeste para o leste, banhando os municípios de Quebrangulo, Paulo Jacinto, Viçosa, Cajueiro, Capela, Atalaia e Pilar, desaguando meia légua ao sul da sede deste último município, na lagoa Manguaba.

Seu ponto máximo de concentração das águas dá-se quando atravessa a serra dos Dois Irmãos, formando então uma bela cachoeira com alguns metros de altura – provável lugar onde se deu o assassinato de Zumbi - , exatamente na divisa entre os municípios de Viçosa e Cajueiro.

Segundo alguns autores, o vocábulo Paraíba origina-se de para – água e hyba – árvore, sendo a tradução integral “árvore d´água”. Outros autores afirmam que Paraíba é o mesmo que para – ahyba, cuja tradução é: rio ruim ou impraticável.

A segunda versão parecer ser a mais acertada, levando-se em conta o fato de que os índios não costumavam fazer denominações gratuitas, e sim baseadas em alguma propriedade ou algum fato concreto. No Paraíba – segundo Alfredo Brandão – o que mais lhes deve ter chamado a atenção foi o fato de o rio possuir seu leito muito pedregoso e de difícil navegação.

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Rio Paraíba: um pouco de água num leito de pedras.




Quilombo

Folguedo natalino alusivo à guerra dos Palmares, muito comum em Viçosa até 1930. Ao contrário do pastoril, da taieira, do reisado e do guerreiro, ainda hoje comumento encenados nas datas festivas do município, o quilombo encontra-se praticamente banido do folclore viçosense.

Encontramos uma minuciosa descrição deste torneio popular às páginas 96-98 do livro Viçosa de Alagoas, de autoria do sempre citado Alfredo Brandão. Transcrevemos integralmente a descrição:

“Era no dia do orago que se realizava o torneio do quilombo: ao amanhecer, em um canto da praça, via-se organizado um reduto de paliçada, poeticamente enfestonado de palmas de palmeiras, de bananeiras e de diversas árvores virentes e ramalhosas que durante a noite haviam sido transplantadas. Dos galhos pendiam bandeiras, flores e cachos de frutas. No centro da paliçada erguiam-se dois tronos tecidos de ramos e folhas; o da direita estava vazio, mas o da esquerda achava-se ocupado pelo rei, o qual trajava gibão e calções brancos e manto azul bordado, tendo na cabeça uma coroa dourada e na cinta uma longa espada. Em torno as negras, vestidas de algodão azul, dançavam ao som de adufos, mulungus, pandeiros e ganzás, cantando a seguinte copla: Folga negro / Branco não vem cá / Se vier / O diabo há de levar.

“Depois estrugiam gritos guerreiros, os instrumentos redobravam de furor; ouviam-se sons de buzina e os negros dispersavam-se para vender o saque da noite. Esse saque era representado por bois, cavalos, galinhas e outros animais domésticos, que haviam sido cautelosamente transportados de diversas casas da vila para o quilombo. A vendagem era feita aos próprios donos, os quais, em regra geral, davam aos vendedores um tostão ou duzentos réis. Por volta das dez horas, o rei, à frente dos negros, ia buscar a rainha, uma menina vestida de branco, a qual, no meio de muitas zumbaias, músicas e flores, era conduzida para o trono vazio. As festas, as danças, os cantos e os gritos guerreiros continuavam até o meio-dia, quando apareciam os primeiros espias dos caboclos (indígenas), os quais, apenas trajando tangas e cocar de penas e palhas, vinham armados de arcos e flechas. Apareciam cautelosos, procurando conhecer as posições dos inimigos através da folhagem.

“Os negros em grande alarido, preparavam-se para o combate.

“Logo depois surgiam todos os caboclos, tendo à frente o seu rei, o qual usava espada e manto vermelho. Marchavam cantando e dançando o toré, dança selvagem acompanhada pela música de rudes e monótonos instrumentos, formados de gomos de taquaras e taquaris rachados, e de folhas enroladas de palmeira. A luta se travava na praça, e depois de muitas refregas, de retiradas simuladas e assaltos, o rei dos caboclos acabava subjugando o rei dos negros e apossando-se da rainha.

“Nesse momento os sinos repicavam, as girândolas estrugiam em frente à Matriz e no meio das vaias e gritaria da garotada, os negros, batidos pelos caboclos, recuavam para o centro do quilombo, o qual era cercado e destruído. Terminava a festa com a vendagem dos negros e a entrega da rainha a um dos maiorais da vila, que para “fazer figura” tinha de recompensar fartamente os vencedores”.

O quilombo é, portanto, um torneio popular no qual as três raças formadoras do povo brasileiro participam de formas diversas: os negros, como em Palmares, resistindo bravamente aos inimigos e ganhando como prêmio a humilhação e a derrota; os índios, a encontrarem na vitória sobre os negros a sua própria derrota e desmoralização, vendo-se “forçados” a entregarem os louros da vitória – a cobiçada rainha – aos brancos maiorais da vila; e os brancos, financiadores da brincadeira, sem que necessitassem suar a camisa ou despender energias, recebendo ao final do quilombo as prendas duramente conquistadas por seus escravos indígenas – como todos os “bons” opressores, aliás.

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Riacho do Meio

Denominação primitiva do atual município de Viçosa (AL).

Tal denominação deriva da existência de um riacho que atravessa o centro da cidade e que se situa entre dois outros – o riacho Gurungumba e o riacho Limoeiro. Daí o nome Riacho do Meio.

Duas lendas narram a gênese da referida povoação.

A primeira, menos divulgada, relata que na margem do riacho Gurungumba, no Sabalangá, existia há muitos anos um preto velho caçador, e na margem do riacho do Limoeiro existia outro caçador, também preto e velho. Sendo companheiros de caçada, tinham sempre como ponto de encontro o riacho que passa no centro, à igual distância dos outros dois, o qual teve a denominação de Riacho do Meio, nome que se estendeu mais tarde ao arraial que se fundou em suas margens.

A segunda lenda, mais conhecida, refere que todos os anos, pelo natal, um padre saía de Atalaia para dizer a missa do galo na Passagem (povoação próxima à cidade de Quebrangulo). Certa feita, havendo chovido torrencialmente durante o dia, o padre, atingindo a margem de um riacho que se situava à igual distância de outros dois (Gurungumba e Limoeiro), encontrou-o de tal maneira cheio que foi impossível atravessá-lo.

Sem esperança de prosseguir viagem, o padre procurou o oiteiro mais próximo, ergueu uma cruz e, quando a noite já ia em meio, celebrou a missa de natal. Essa cruz acabou por atrair romeiros, aos quais se devem as primeiras habitações do lugar, que tomou o nome de Riacho do Meio.

Riacho do Meio é o título do soneto – aliás bastante ilustrativo – do farmacêutico e poeta José Aragão:

“Tu que banhaste, outrora, os índios natos,
E deste viço aos matagais altivos,
Tu que fizeste um padre abrir os matos
Para plantar a cruz entre os nativos;

“Tu que frisado de mágicos formatos
Foste o marco de povos primitivos,
Cenário onde a Assembléia em lindos atos
Desenrolou-se aos surtos mais festivos;

“Meu pobre riacho! Agora vais à míngua,
Velho, mirrado, a te escorrer dormente,
Levando tantas queixas desta gente.

“Eu quisera entender essa tua língua
Para dizer-te, a sós, meu velho veio,
O que te faz assim, Riacho do Meio”.

Em outubro de 1831 a denominação foi mudada para Vila Nova de Assembléia. Riacho do Meio passou a ser designação para um modesto volume de águas fétidas e poluídas que corta o centro da cidade até desembocar no Rio Paraíba, provocando incômodas enchentes nos invernos mais rigorosos.

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Igrejinha do Rosário: marco inicial
da povoação
do Riacho do Meio.




Sabalangá

Uma das duas povoações mais antigas do município. A outra é a Mata Escura.

Denominado primitivamente de Dambrabanga, o Sabalangá é hoje a mais habitada região suburbana de Viçosa, separando-se do centro da cidade pelos arruados dos Paus Brancos e do Espírito Santo.

Outrora foi abrigo dos negros chefiados por Ganga Zumba e Zumbi, a exemplo dos mocambos de Osenga e Andalaquituche, todos situados nos antigos limites do município. O vocábulo Sabalangá é composto de duas partes: sala ou zala, que significa casa ou ajuntamento de casas, e banga, nome de uma serra onde os negros se tinham alojado no último período da Guerra dos Palmares.

Zala – banga. Talvez por isso muitos de seus atuais habitantes pronunciam Salabangá, ao invés de Sabalangá.

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Sabalangá:
por aqui
passou Zumbi.




Théo Brandão

O maior expoente da chamada “Escola Folclórica de Viçosa” (1907-1981). Médico e poeta, publicou Folclore de Alagoas, Folguedos Natalinos, A Chegança e Reisado Alagoano.

Os outros três expoentes da referida Escola foram José Maria de Melo (Enigmas Populares e Os Canoés), José Pimentel de Amorim (Medicina Popular em Alagoas) e José Aloísio Brandão Vilela (O Coco de Alagos).

A designação “Escola Folclórica de Viçosa” deve-se ao folclorista Manuel Diegues Júnior, como reconhecimento ao trabalho sério e continuado exercido pelos quatro folcloristas, no que se referia ao estudo e divulgação das mais diferentes modalidades de manifestações populares.

A exemplo de José Pimentel (J. Paraíba), utilizavam-se sempre de pseudônimos nas publicações que efetuavam em jornais viçosenses. José Maria de Melo era Jorge Miral. José Aloísio disfarçava-se de Osório de Olivares ao escrever artigos sobre folclore e de Franco Lino quando se dedicava ao exercício da crítica literária. E Théo Brandão assinava seus poemas de cunho modernista – e que acusam marcante influência de Jorge de Lima – como João Guadalajara.

De sua autoria é o poema VIÇOSA:

“Viçosa
Cidadezinha do país das Alagoas
Riacho do Meio, Vila da Assembléia...
Um padre ia dizer missa na Passagem,
A Passagem estava cheia
E se disse missa ali mesmo
Na beira do riacho,
Riacho do Meio,
Meio de minha terra,
Viçosa!
Tu tiveste um princípio
Igualzinho ao princípio do Brasil
Com teu padre
E tua cruz de madeira.
Até nisto tu és tão brasileira
Viçosa do país das Alagoas,
Terra de tanta coisa ruim,
Terra de tanta coisa boa!
E o teu rio sinuoso e cheio de pedra
Como a Vida;
E os Dois Irmãos
Olhando Inhamunhá na água branca do rio...
E o teu “Quadro”
Que não é quadrado mas é um trapézio,
“Quadro”, que guarda todas as reminiscências
Da minha vida de criança.
Dia de “festa” tinha cavalinhos, tinha tilburis,
Negras velhas vendendo manuês e malcasados
Em tabuleiros alumiados por candeias de querosene.
- Ah! Os bolos da Joana Doceira!
E a banda de “pifes”
Tocava num coreto no meio da praça.
Tinha leilão
E o Chico Doninha gritava: Quanto me dão!
As prendas na mesa.
O Reisado dançando na porta da igreja.
- Eta, secretário da sala!
Os quilombos
- Folga negro, branco não vem cá.
As Cavalhadas
- Peixe, pirão d´água.
A procissão.
O cordão branco das filhas de Maria
Descendo a ladeira da Matriz,
“Quadro” bonito do Brasil nacional...
Viçosa, cidadezinha do país das Alagoas,
Terra de tanta coisa ruim,
Terra de tanta coisa boa!

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O folclorista José Aloísio B. Vilela brincando cavalhada e bancando Ricarte de Normandia (foto tirada por Théo Brandão em 1928).




UAI!

Interjeição denotativa de surpresa e espanto, sentimentos estes que me invadiram quando vim a saber ser viçosense o historiador Manoel Maurício de Albuquerque.

Nascido na terra de Graça Leite e Octávio Brandão a 1o. de dezembro de 1927, ainda cedo Manoel Maurício (Maneco para os alunos, Nezinho para os familiares) migrou para o Rio de Janeiro, então capital da República, onde veio a formar-se pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.

A partir de 1950 exerceu o magistério de forma ininterrupta, lecionando na PUC, UFRJ, Cândido Mendes, Gama Filho, Santa Úrsula e no Instituto Rio Branco, tendo ao longo de sua vida transmitido de forma crítica de questionadora a História brasileira a cerca de 65.000 alunos. Com o advento do golpe militar de 1964 sofreu sucessivas perseguições, até ser compulsoriamente aposentado em 1968, aos 40 anos de idade, sob a alegação de que aliciava alunos com propósitos subversivos, doutrinando-os pela cartilha marxista.

Para sobreviver, viu-se obrigado a lecionar em colégios do 2o. grau e cursinhos de vestibular. Nem com isso o regime se contentou. Perseguiu-o, prendeu-o e torturou-o por duas vezes, em 72 e 73. As torturas e a prisão acarretaram-lhe sérios problemas cardíacos, que viriam a vitimá-lo alguns anos mais tarde.

Na segunda metade de década de 70 dedicou-se ao teatro e ao cinema. Foi assessor técnico dos filmes “Getúlio Vargas, Imagens de um Mito” e “Brasil, cinema e História”, ambos da cineasta Ana Carolina, e orientou diversos trabalhos teatrais, entre eles “A Ópera do Malandro” de Chico Buarque, “Campeões do Mundo” de Dias Gomes e “Rasga Coração” de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha.

Em fevereiro de 1981, já reintegrado à UFRJ, publicou pela editora Graal um volume com cerca de 800 páginas, intitulado “Pequena História da Formação Social Brasileira”. Nas palavras do próprio autor, “o grande personagem deste livro é o povo brasileiro, e as suas manifestações constituem a matéria-prima sobre a qual procurei exercer uma atividade transformadora para convertê-la em um produto científico”. A obra teve excelente acolhida, tanto por parte da crítica (com lógica exclusão dos críticos a serviço da direita e dos historiadores ultra-acadêmicos que se empenham em preservar a fictícia História dos homens sem classes e interesses antagônicos) quanto por parte do público. O conhecido antropólogo Darci Ribeiro afirmou ser “A Pequena História da Formação Social Brasileira” “um dos livros mais importantes que se fez neste país nos últimos anos”.

Menos de um mês depois,a 17 der março, falecia Manuel Maurício, vitimado por um enfarte quando se encontrava numa livraria do centro do Rio de Janeiro. O poeta de cordel Raimundo Santa Helena dedicou-lhe o poema “Adeus, Manoel Maurício” e o Arquivo Geral do Rio inaugurou, em maio do mesmo ano, a Sala de Leitura Manoel Maurício de Albuquerque, com boa parte do acervo deixado por Maneco, um dos mais cativantes e irreverentes mestres (na ampla acepção do vocábulo) que o Rio já possuiu, a crer na unânime opinião de alguns colegas de ofício (Décio Freitas, Eulália Lahmeyer Lobo, Chico Alencar, José Luiz Werneck, etc.) e de incontáveis alunos que converteram seu sepultamento num comovente ato apoteótico.

Em Alagoas o nome de Manoel Maurício permanece no mais rigoroso esquecimento, como se dispuséssemos de bons e competentes historiadores cá na província, quando é sabido que os nossos historiadores (se assim os podemos denominar) não passam – quase sempre – de maus e tendenciosos ficcionistas, mesmo quando tratam de temas e fatos de relevante e indiscutível significação histórica. Santo de casa não faz milagre, bem sabemos. Que dizer de um santo que não escondia sua devoção por Marx e Althusser?

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Prof. Manoel Maurício: a postura irreverente e questionadora na transmissão do fato histórico.




Violeiro

Não poderíamos escrever este vocábulo sem que fizéssemos menção ao grande cantador de viola Manoel Nenen – considerado pelo folclorista José Aloísio B. Vilela o maior cantador do Nordeste. Afirmação um tanto exagerada, mas não inteiramente absurda, pois que Nenen era cantador e dos melhores que existiram na região nordestina deste país, a ponto de merecer vários e entusiasmados artigos que o dicionarista Aurélio Buarque de Holando publicou em jornais cariocas.

Poeta analfabeto, viçosense de nascimento, lavrador de profissão, cantava apenas nas horas de folga. Era muito comum, na primeira metade deste século, encontrá-lo com um companheiro na prática do desafio no Engenho Boa Sorte, de propriedade do “coronel” Elias, pai do folclorista José Aloísio, do senador Teotônio Vilela e do cardeal D. Avelar Brandão Vilela.

Nestas ocasiões, o repentista vangloriava-se:

“Pra cantar mais do que eu canto
Nenhum poeta nasceu.
Se nasceu, não nasceu vivo;
Se nasceu vivo, morreu;
Se existe ainda está muito oculto
Que ainda não apareceu”.

E acrescentava:

“Eu sou bom na cantoria,
Eu sou bom em toda parte,
Bom no verso, bom na rima,
Bom na vida, bom na arte,
Bom na goela, bom na fala,
Bom no punhal, bom na bala,
Bom até no bacamarte”.

Enquanto afinava a viola e temperava a garganta para a cantoria, Manoel Nenen assim se apresentava à platéia atenta:

“Seu doto eu pra cantar
Não faço triste figura,
Abro a boca, estendo o verso,
Tenho rima com fartura,
Meu pensamento é um veio,
Parece com um rio cheio
Correndo em toda largura.

“Sou eu o Manoel Nenen
O campeão do repente
Que quando dispara um verso
Tem quatro ou cinco no dente
E nunca perde uma rima
Nem que a viola arrebente.

“Eu me chamo Manoel
Fuloriano Ferreira,
Papagaio falador,
Guriatã cantadeira,
Rosa de todo jardim,
Água de toda ribeira”.

E justificava o seu analfabetismo com a seguinte estrofe, arrancando aplausos da platéia num rasgo de falsa modéstia:

“Sou cantador atrasado
E meus erros ninguém note,
Eu só canto porque Deus
Foi quem me deu este dote,
Mas só conheço o O
Devido a boca de um pote”.

Já velho, doente e paralítico, era comum vê-lo tropeçar num verso e pedir ajuda ao “baiano” da viola para o vazio de uma inspiração que fugira. Nestas ocasiões, sentenciava inconsolável para os espectadores: “É melhor mastigar brasa que mastigar um repente”. Mesmo assim prevenia ao seu desafiante:

“Colega tenha cuidado
Do meu cantar tome nota,
Sou um pé de roseira branca
Quanto mais velho mais bota,
O meu tanque de repentes
Cantador algum esgota”.

Depois, deixava-se abater pelo desânimo e confessava aos ouvintes:

“Eu ainda estou cantando
Mas sei que não canto bem
Porque minha cantoria
Já não agrada a ninguém,
Estou na situação
De quem já teve e não tem.

“Nas artes da cantoria
Fui mestre de toda escola,
Mas hoje velho e cansado
Me falta lira na viola,
Eu vou armando o repente
E a ponta da língua enrola.

“Já fui aqui na Viçosa
Assombro dos cantadores,
Agradei a todo mundo,
A coronéis e doutores,
Mas hoje estou desse jeito,
Peço perdão aos senhores”.

Manoel Nenen morreu beirando os 100 anos, em 1980, num asilo de velhos, em Maceió. Orgulhoso, há muitos anos recusava-se a versejar e a manejar sua viola, evitando repentes disparatados e versos de pé-quebrado.

Deixou-nos esta estrofe como despedida:

“Adeus, adeus minha gente,
Está finda a cantoria,
A todos muito obrigado
Pela sua fidalguia,
Já está chegando a hora,
Meu povo eu já vou embora,
Adeus, até outro dia”.

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Xistose

O mesmo que esquistossomose.

É a patologia mais disseminada na Zona da Mata alagoana, seguida de perto pela doença de chagas. Pesquisas realizadas no início da década de 70 apontaram Viçosa como o maior foco de esquistossomose do mundo – recorde este bem mais merecedor de preocupação que de orgulho.

A doença deve o nome ao causador – o verme Schistosoma, provavelmente originário do Egito, tendo sido sua presença detectada até mesmo nas múmias dos faraós.

O verme se aloja preferencialmente em caramujos de água doce – muito freqüentes nas águas estagnadas ou semi-estanques do Paraíba, durante o verão e em seus riachos contribuintes. A espécie de caramujo mais comumente encontrada na região é a simpática e pouco pronunciável Biomphalaria glabatra.

Só secundariamente é que o Schistosoma se abriga no organismo humano, provocando-lhe distúrbios hepáticos e intestinais e, vezes muitas, presenteando-lhe com a morte.

O folclorista e médico viçosense José Pimentel de Amorim, de tanto vasculhar a vida do helminto, acabou – pioneiramente – por descobrir seu hábito polígamo. O verme possui queda especial pela fauna humana, o que não chega a nos garantir completa fidelidade. Pode, também, ser encontrado nos corpos de gatos-do-mato, ratos, raposas e bichos afins.

Trata-se – a esquistossomose – de uma patologia extremamente recomendável para o nosso melhor inimigo.

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Raízes e meizinhas na feira de Viçosa: para apressar o parto ou para deter a xistose.

















Zé do Cavaquinho

Boêmio-maior viçosense (1911-1981).

Autor do chorinho Escorrego do Urubu e das marchinhas Lagartixa e Jacaré Com Tempero; proprietário do bar-boteco Trovador Berrante, endereço boêmio do senador Teotônio Vilela até 1972, quando o menestrel das Alagoas abandonou de forma definitiva seu convívio com as bebidas alcoólicas; pai de quatorze/quinze filhos, todos eles exímios tocadores de cavaquinho e violão; protagonista de dezenas de histórias e estórias, todas elas reveladoras de seu espírito boêmio e irreverente.

Na década de 20, convidado para uma buchada na cidade de Palmeira dos índios, sertão alagoano, para lá migrou com intenção de voltar no dia seguinte. Gostou tanto da buchada e da amizade que travou com o glosador Chico Nunes, que lá permaneceu por quase oito anos.

Quando retornou a Viçosa, os amigos de copo argüíram-lhe acerca do motivo de sua longa ausência:

- Que peste você andou fazendo todo esse tempo em Palmeira, ô Zé?

O boêmio alisava mansamente o ventre, punha seu olhar melancólico sobre os companheiros e após libertar um magistral arroto, concluía:

- Buchada mais da pesada, meninos... buchada mais da pesada...

Certa feita, pleiteando um empréstimo no Banco do Brasil, viu-se argüido pelo gerente acerca de suas ocupações:

- Seu Zé, de que o senhor vive?

E Cavaquinho não titubeou:

- Vivo de olhares e sorrisos.

O gerente, dotado de espírito bem mais prático que poético, negou-lhe prontamente o empréstimo.

Outra vez, beneficiando-se duma carona, viajou até Aracaju para cobrar uma certa quantia que lhe deviam. Lá chegando, encontrou-se de chofre com seu devedor, boêmio como ele, e entraram a beber e a tocar por oito dias seguidos.

De volta a Viçosa, seus amigos de copo reuniram-se no Trovador Berrante para comemorar, com música e aguardente, o seu retorno. Lá pelas três da madrugada, o Zé interrompeu bruscamente a farra.

- Pára, pára, pára com essa zoada.
- Mas Zé, o que é que deu na sua cabeça?
- Na minha cabeça, nada: no meu bolso, deu-se uma desgraça. Pois não é que eu fui até Aracaju para “espremer” um devedor e – lembrei-me agora – passei com ele oito dias, bebi, farreei, toquei e não cobrei a peste da dívida!

A turma fez um ar de tristeza e desolação. O Zé exaltou-se:

- Volta, volta, volta com essa zoada.
E a serenata prolongou-se até às seis da matina.

Conta-se que, certa ocasião, estando Zé do Cavaquinho responsável pelo acompanhamento musical de uma procissão religiosa, o boêmio entrou a tomar umas e outras no Trovador e, chegando a hora, a cabeça do Zé estava mais para bêbada que para lúcida.

E ele não teve dúvida. Ao invés de tocar fúnebres e monótonos hinos sacros, castigou em seu cavaquinho a “Jardineira”. E os fiéis não se fizeram de rogado, acompanhando o boêmio na cantoria:

“Ô jardineira, por que estás tão triste,
Mas o que foi que te aconteceu?
Foi a camélia que caiu do galho,
Deu dois suspiros e depois morreu...”

E adeus procissão, senhor Vigário.

Inúmeras são as histórias que se contam a seu respeito – algumas, reais; outras, produtos da imaginação de seus admiradores. O fato é que Zé do Cavaquinho, boêmio dos mais autênticos e respeitáveis, jamais se importou em dissociar a fantasia da realidade, ou, em outras palavras, a vida sonhada da vida vivida.

Legou-nos três máximas dignas de reflexão:

- Vida é negócio para ser vivido e gozado, nunca filosofado;
- Beber, só com método. Sem método, até água de pote faz mal;
- Se beber, morre. Se não beber, morre. Então vamos morrer bebendo, gentada.

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Bar
Trovador Berrante: certeira morada do espírito boêmio de Zé do Cavaquinho.